As Múltiplas Realidades de Evangelion


Brincando de destrinchar um clássico filosófico.


Pois é. Quando disse que ia rever Neon Genesis Evangelion no meu post de aberturas preferidas, eu não estava brincando. Foi uma loucura firmar uma coisa dessas, visto que estou atolada em animes e mangás, dos mais variados estilos. No entanto, é gratificante chegar na conclusão que nada mudou. Não no sentido de que aconteceria magicamente um milagre, e o desenvolvimento e final seria outro. Não. Mas, na ilusão de que me causaria um outro impacto. De repente, uma visão mais aguçada sobre os fatos. Infelizmente, não alcancei essa façanha. Tentar compreender a alma dessa obra, é uma missão suicida. Não existe uma verdade absoluta. Existe sim; interpretação. Por esse motivo, considero que Evangelion não mudou em nada para mim. Àqueles sentimentos de indagações, ainda hoje permanece o mesmo. Seus valores continuam intactos, Invictos. Tendo isso em mente, espere desse texto um diálogo aberto, daquilo que eu acho que Evangelion tem de melhor : as múltiplas realidades. Talvez esse seja o ponto que mais reforçou pontos comigo. Porque de resto, tudo continua no seu devido lugar. Excepcionalmente maravilhoso, intrigador.






















Não é nada novo colocar o destino da humanidade em estado de alerta; sempre existiu, e sempre existirá ''caralhadas'' de obras que explorará de alguma forma diferente essa mesma premissa. O tempero da coisa está na maneira como irão fazer pra destacar tal história, e isso Hideaki Anno conseguiu com maestria. De forma soberbamente idolatrada, como também de um jeito extremamente odioso, Anno conduziu a trama para dar a cara à bater, sem um pingo de dó ou medo. Simbolismo religioso, combates assustadores entre mechas, efeitos psicológicos, e personagens que provocam muitas filosofias . Todas essas características são amarradas numa narrativa complexa, que não erra em nenhum dos seus quesitos. O visual como um todo, seja pela fotografia ou pela história, é tudo muito chamativo e questionador - acho que agora eu realmente encontrei a palavra certa para definir Evangelion. Se você assistiu e não ficou se perguntando 'que raios de anime é esse', certamente não estamos falando na mesma língua.


Todos já conhecem o plot de Evangelion, mas não custa nada refrescar a memória antes de partir ao que realmente interessa, não é mesmo? Beleza. A série se passa em uma Tóquio do futuro, quinze anos após um cataclisma global. A história principal centra-se em Shinji, um adolescente que é recrutado pela obscura organização NERV para pilotar em combate uma biomáquina gigante chamada de Evangelion contra seres monstruosos conhecidos como Anjos. Evangelion explora as experiências e emoções dos outros pilotos e membros da NERV enquanto tentam evitar uma nova catástrofe. *Ps: Tem um texto muito legal no blog Nerd Geek Feelings que explica a linha temporal de Evangelion, se de repente o assunto lhe interessar, recomendo a leitura. ;)

O período que antecedeu o nascimento desta série, tinha um estilo um tanto que distanciado do que passou a ter com mais frequência depois. Hayao Miyazaki em seus longas, na época obteve baixos rendimentos; Meu Amigo Totoro (1988) e O Serviço de Entregas da Kiki (1989) são exemplos disso. No entanto, apesar do retorno financeiro baixo, era o estilo que predominava o popular. Até que veio o Akira (1988), chutando todos os baldes possíveis, ganhando a atenção do mundo inteiro. Mamoru Oshii declarou inclusive que ninguém procura assistir um anime que todo mundo gosta. Mesmo com a receita do sucesso entregue aos quatro cantos do país, Hideaki Anno fez o reverso disso - mesmo que de forma não muito distante. Conduziu um anime de mechas, com largas influências de Space Runaway Ideon de Yoshiyuki Tomino.

Foram feitos então, 26 episódios pelo estúdio Gainax em 1995, e mais tarde ganhou um filme com um final alternativo da série. Em 2003, o anime ganhou uma nova versão chamado "Renewal of Evangelion". Esse remake trazia algumas melhorias na animação, cenas novas (director's cut) e um enxugamento na trilha sonora. No Brasil, a versão original (2001) foi exibida pelos canais Locomotion e NGT (nesta última, de forma não-oficial), com áudio dublado pelo estúdio Mastersound, e teve sua versão "renewal" (2003) exibida pelo canal Animax (sem cortes), com nova dublagem feita pelo estúdio Álamo. Vale lembrar também que o mangá já deu as caras no Brasil pela editora JBC. 



É muito maluco o modo como as coisas vão acontecendo em Evangelion. A introdução de personagens, clímax, conceito de mundo, é tudo muito ''corretinho'', de relance, jamais pensei no que ele iria se transformar em seus episódios finais; um monstro gigante da animação japonesa - queira você ou não (Antes que algum hater venha me xingar nos comentários, tenha em mente que estou falando do impacto que ela teve nas pessoas, e não necessariamente da qualidade em questão, o que também estaria inserido, mas não é o caso agora). A apresentação de cada personagem, é uma coisa que gostei e continuo gostando muito, apesar de passar uma aura de desinteressante. Mas é aí que eu vejo o charme do negócio, Shinji por exemplo, é um adolescente nível hard, sua melancolia e indignações acerca da responsabilidade que lhe é imposta é algo levado ao extremo, aponto de deixar bem marcado na lembrança o papel dele ali; questionar. Muitas pessoas ignoram a mensagem poética por trás disso, e simplesmente ficam apenas com o básico: Shinji é um cara pé no saco. O que não deixa de ser verdade, mas eu gosto das provocações que ele levanta, e desde o começo, eu sempre me via nele. 

A primeira vez que conheci Evangelion, foi uma experiência muito estranha. O primeiro episódio - assim como aconteceu com Cowboy Bebop - não me cativou em nada, a não ser o visual mesmo. Tive que rever várias vezes pra poder pegar o espírito da coisa. Tudo aquilo me era morno, tinha muita dificuldade em poder decifrar sobre oque exatamente se tratava a história, e não conseguia prosseguir na série. A única coisa que sabia era que; tudo o que tenho dificuldade em me adaptar no início, mais tarde, se torna uma das minhas maiores paixões. Era questão de pegar o espírito da coisa. E isso vale não só para animes, mas também para músicas, filmes e por aí vai. Para entender, é preciso ter contato. Essa frase ecoa na minha cabeça toda vez que falo mal de algo que não tenho muita intimidade. Como se fosse um puxão de orelha. Enfim. Hoje eu posso dizer que adoro animes assim, com protagonistas que parecem anti-heróis, temáticas simples que trazem grandes significados, personagens distintos que possuem algo em comum, e cenários que dão vontade de estar neles - mesmo se tratando de um apocalipse. Tendo isso em mente, você já deve imaginar o quanto amo Evangelion. 



Mas voltando ao raciocínio inicial, a trama central nos seus 10 primeiros episódios é dentro do padrão, do 11 ao 20, percebe-se a criação de um pequeno desvio de ritmo, até que passa mais três e a única coisa que se passava na minha cabeça era ''What's Going On?''. Os dois últimos você já sabe, um belo choque de existencialismo - Por isso então afirmei que o modo como Evangelion puxa um episódio ao outro é muito maluco. 

A atmosfera de desesperança, solidão e fraqueza foi e continua sendo os pontos mais altos da série, além de todas as suas mensagens e dilemas. Entrar junto com alguns personagem dentro de uma unidade Eva, trazia a sensação de dor e sofrimento, em alguns momentos, me sentia claustrofóbica, principalmente quando era com o Shinji; quando estava em uma luta desvantajosa por exemplo, seus gritos insanos arrepiavam meu corpo inteiro, fora o detalhe de que eles tinham que respirar dentro de uma espécie de placenta para pilotar um Eva. Esses pequenos complementos que a série dava, ajudava a construir um sentimento sufocante que a série precisava ter pra transpassar incomodo.

E o quarteto principal de personagens da história, trazia consigo o peso do mundo nos ombros, contribuindo assim com o clima imposto sobre eles. Shinji, Asuka, Rei e Misato, embora o principal seja o Shinji, cada um tinha a sua hora de desenvolver um pedaço do enredo. Distintamente, suas personalidades eram reversas uma das outras, criando assim um dinamismo de diálogos muito maiores. Até mesmo as cenas estáticas, onde as pausas de conversas eram longas, existia algo sendo dito sobre eles, iluminava para quem quisesse ver o íntimo de suas emoções. Pra mim, era um detalhe bacana, mesmo sabendo que se tratava de reutilização de imagens do estúdio Gainax.


Se a qualidade da animação pode ter dado insatisfação para uns, os intensos conflitos psicológicos podem ter causado enjoo para outros, devido a sua quantidade em demasia. Pensadores como Schopenhauer, Kierkegaard e Hegel são homenageados durante o percurso da história, como por exemplo o ''Dilema do Ouriço'', ''Desespero Humano'' e ''Holismo e Instrumentalidade''. As entidades SEELE e NERV também representaram um importante papel de discussão na série, de ''sociedade perfeita'', visto que o uso da biotecnologia em criar uma nova humanidade era algo extremamente duvidoso.  

No entanto, o ponto mais alto de Evangelion para mim, são as realidades que o quarteto de protagonistas, tinham de diferente e ao mesmo tempo em comum. Shinji era o auto-menosprezo, Asuka era a superação do trauma e Rei a construção do ''eu'' em pessoa. O que eles tinham em comum era a questão de identidade, junto com a Misato que claramente se sentia responsável por eles, mas também que continha dentro de si um ponto de interrogação sobre si mesma. Cada um era e enxergava daquela situação algo diferente a ser questionado e debatido, criando em Evangelion assim múltiplas realidades para serem vistas e analisadas. Os últimos episódios é a apresentação nítida dessa ideia de controverter cada conceito para quem ainda estivesse em dúvida da intenção da série. Dialogar com o público. Colocar em pauta o que não era tão comum. Pra quem assistiu na época esperando muita ação entre mechas, fanservice, levou um baita tapa na cara ao se deparar com uma obra centrado em traumas emocionais.  


Eu gosto desse jogo de quebra-cabeças. Os personagens se complementam. Assim como o filme que deu um final alternativo para Evangelion. Eu gosto dos dois finais, ainda hoje não consigo distinguir qual dos dois é melhor, mas acredito que cada um teve o seu papel ali, de trazer a verdade mesmo em uma linha temporal diferente. Entretanto, podemos enxergar algo evidente em ambas plataformas. O misto de realidade, interna, externa, e de como as coisas realmente são. Shinji não se sentia amado, logo existia um ódio imenso de si mesmo, criando uma barreira para a sua auto-aceitação. E os episódios finais mostram exatamente essa percepção que Shinji tinha de si. A realidade vista por ele. Shinji passa o anime inteiro deixando bem claro o grau de seu ódio e desprezo pela sua vida, que quando ele reconhece isso no fim, se torna um momento explosivo na série, mesmo que não se trate da ação física (lutas ente robôs), mas sim de ação verbal (auto-reconhecimento). Como disse a sub-comandante da NERV, a Fuyutsuki; ''sua verdade pode ser alterada, simplesmente, pela maneira como você aceita''. Shinji passa por esse tipo de transformação, mesmo se odiando, ele reconheceu que era capaz de se amar, se fez merecedor de estar vivo em meio à tanta tragédia. Hideaki Anno fez cenas belíssimas, mas não só por esse fato, mas sim por mostrar tudo isso como se tivéssemos inseridos dentro da cabeça/imaginação do Shinji. Sem dúvida, esse desfecho marcou a minha vida. 

Porém, as realidades existenciais na série não param por aí. Ainda temos Asuka agindo de forma introspectiva, vivendo num modo solitário e egoísta, obcecada com o sucesso profissional, Asuka de tanto querer o perfeccionismo, acaba sendo rejeitada por aquilo em que mais se dedicava, seu EVA. Ignorada por justamente ''não abrir o seu coração'', como disse Kaworu, a mudança ocorre quando ela também se aceita, e enxerga que é carente, reconhecendo que sua mãe não a abandonou, pois esteve o tempo todo com ela, através do campo AT, no EVA-02. Rei Ayanami por sua vez,  via em si alguém vazia, cheia de ódio, tristeza e melancolia. Enfim. Como pode perceber, cada personagem passa por um amadurecimento; de aceitação e rejeição à instrumentalidade humana.

É por isso que eu tenho um carinho enorme por Neon Genesis Evangelion, não importando em que momento da minha vida eu re-assista a maravilhosa abertura ou a música de encerramento, sempre me lembrei do impacto que ela teve sobre mim e de como um anime com uma visão pessimista pode mudar outras realidades, como a minha.


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