por Pedro
Os mistérios do nosso mundo são tão fantásticos quanto amedrontadores.
Eles são os motivos e as consequências de nossa curiosidade, crescimento
individual e coletivo. Tentamos entender as coisas desde que o ser
humano percebeu que ter saído do mar talvez não tivesse sido uma boa ideia. E
em algum ponto a curiosidade externa se voltou a nós mesmos, e os segredos de
nossa mente começaram a ser aflorados. Tão poderosa quanto os fenômenos
naturais, nossa mente é tão complexa e relevante quanto a vida em si. E foi
então nós nos vimos entre dois caminhos distintos, mas, intrinsecamente
interligados: dois mundos repletos de incertezas e poderes, cujos quais parecem
tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos, apesar de, medonhamente
incontroláveis. E por mais apavorante e incerto que isso possa parecer, o ser
humano nunca desistiu de tentar entender. E citando Albert Einstein: não são as respostas que movem o mundo, são
as perguntas.
Ghost Hound nunca havia se destacado aos meus olhos até que
a Netflix apostou uma ficha nele. E eu preciso dizer que se eu fosse apostar,
colocaria até mais fichas. Com o conceito original criado e desenvolvido em
1987 por ninguém menos do que o pai de Ghost in The Shell (Masamune Shirow), o
anime só teve a oportunidade de ganhar vida em 2007 pelo estúdio Production I.
G. (Ghost in The Shell, The End of Evangelion, xxxHolic, e mais alguns). Um
mangá de 2 volumes também foi lançado no mesmo ano com o título Shinreigari:
Another Side.
Tudo tem início na cidade de Suiten, uma área montanhosa da
ilha de Kyushu, onde um acontecimento trágico e insolúvel acontece, marcando a
vida dos moradores locais e dando visibilidade a cidade. Herdeiros de uma
conhecida e respeitada família de produtores de saquê, Taro Komori e sua irmã
Mizuko Komori, são sequestrados ainda crianças e um alto valor é pedido para
serem libertados. Mas algo não parece certo, pois todas as tentativas de
comunicação com os sequestradores acabam falhando, e mesmo com o dinheiro
pronto para a troca, eles dificultam. E como nada sai como o planejado, o
sequestrador é atropelado por um caminhão durante sua fuga e morre, juntamente
com Mizuko, que amarrada em uma cama ao lado de seu irmão, sucumbe à
negligência e à fraqueza, enquanto Taro vê toda a cena agoniante.
11 anos depois e o garoto, agora com 14 anos, vive sob a
sombra de um trauma em uma família que respira sentimentos reprimidos. Sua mãe
sofre calada com o abalo e reage a qualquer menção do nome da filha, enquanto
Taro não se lembra direito dos acontecimentos do sequestro, mas revive
constantemente, em sonhos, as memórias do último suspiro de Mizuko. O pai,
enigmático e calado, se abstrai da realidade ouvindo música, longe de todo o
silêncio ensurdecedor da tragédia
No primeiro episódio, intitulado Sonho Lúcido, nos é
mostrado a visão de sua irmã morta ao seu lado, e então ouvimos o som das
hélices de um helicóptero vindo resgatá-los em um hospital abandonado. Logo em
seguida, ele se vê voando acima da floresta, passando por cima de um templo
xintoísta, e então, avista uma garota de blusa vermelha na escadaria que leva ao
templo. Ela se vira, o encara por longos segundos e depois vai embora. E após
isso, uma força invisível puxa sua consciência de volta ao seu corpo, fazendo
com que Taro acorde no chão de seu quarto e imediatamente vá a procura de seu
gravador para registrar mais uma experiência estranha em seus sonhos. Algo
recorrente e que parece ser intensificado devido à sua narcolepsia.
***
E para aqueles que, assim como eu, se interessam pelos
assuntos oníricos, recomendo fortemente que leiam A Arte do Sonhar, de Carlos
Castaneda. É impossível não identificar algumas coisas do livro no anime.
***
Há ainda personagens memoráveis e complexos que ajudam a
dar forma à obra e aos mistérios. Makoto Ogami é o herdeiro da poderosa e
influente seita Ogami, uma ramificação da família de Taro, que aparentemente
não mantém nenhum laço com o outro lado. Ele viu o suicídio do pai, que cortou
as pálpebras e depois o pescoço uma semana após as crianças sequestradas haviam
sido encontradas, o que levou a polícia a considera-lo suspeito, porém, nada até
então foi provado. Sua mãe o abandonou logo em seguida. Makoto é taciturno e esfíngico,
como se cultivasse uma enorme raiva dentro do peito esperando o momento certo
para explodir de uma só vez. Passa quase o tempo todo calado e não interage com
ninguém de sua escola. Sua avó, a líder da seita, tenta convencê-lo a todo
custo a treinar e se dedicar ao caminho de sua religião, porém, ele odeia ambas
com todas as forças.
Masayuki Nakagima é petulante e soberbo. Ele acaba de se
mudar de Tóquio para a pequena cidade, pois seu pai trabalha para uma empresa
misteriosa e que recentemente foi instalada nas redondezas. Falando
incessantemente, Masayuki está sempre importunando as pessoas para coletar informações e mostra-se
interessado, até demais, sobre os acontecimentos do sequestro, o que o leva,
inicialmente, a ser odiado tanto por Makoto, quanto por Taro. Seu pai passa o
dia todo fora de casa, enquanto sua mãe permanece todo o tempo com os olhos
vidrados em um jogo de vídeo game na televisão da sala, sem nunca prestar
atenção em nada mais. Em certo ponto, descobrimos que ele tem acrofobia (medo
de altura) devido a um acontecimento trágico em sua antiga escola que o afetou
para sempre.
Masayuki, Makoto e Taro. |
Miyako Komagusu é a filha do sacerdote do templo xintoísta,
e é também a menina de blusa vermelha que viu Taro enquanto ele estava fora do
corpo. E apesar de não ser uma das protagonistas, seu papel é tão importante
quanto. Sua vida toda foi cercada de visões e sensações de possessão. Muitas
vezes, com um olhar vago e distante, ela parece estar perdida entre um caminho
e outro, sem saber para onde seguir. Apesar de ser a personagem mais nova, é
também a mais responsável e madura, cuidando de seu pai e dando broncas em
todos. Possui personalidade forte e decidida. Seu pai a trata como se ela fosse
doente, e apesar de seu importante papel como sacerdote espiritual, ele mantém
uma visão bem racional e mundana de tudo, como se a espiritualidade fosse
apenas um fardo.
Miyako Komagusu |
Apesar de inicialmente sermos apresentados, de forma lenta,
ao trauma de Taro e sua habilidade de se projetar para fora do corpo, no
desenrolar da história também somos introduzidos a uma enorme teia de
informações e dúvidas complexas. Algumas coisas estranhas começam a acontecer
na cidade. Avistamentos de uma enorme criatura negra em um local abandonado
começa a atrair os jovens mais aventureiros, enquanto Taro, Makoto e Masayuki
começam a ter encontros no mundo astral, ao mesmo tempo que, um renomado
psicólogo de Tóquio vem a cidade para tratar o trauma de Taro, e começa a ter visões
e sensações estranhas quanto mais ele conversa e entende o menino. Em
contrapartida, a empresa onde o pai de Masayuki trabalha parece estar fazendo
algum estudo genético e supersecreto financiado pelo governo.
E assim como em Dirk Gently: tudo está conectado! Três
crianças unidas pela tragédia e traumas de um passado do qual não tiveram culpa,
mas que moldou suas vidas, descobrem em si – e nos mistérios do sobrenatural – uma
oportunidade de desvendar o que realmente aconteceu naquele momento em que a
vida de suas famílias mudaram para sempre. Eles veem em seus pais algo que
esperam não levar para o resto de suas vidas: arrependimento. E então, agarram
com todas as suas forças a responsabilidade da esperança. Como se, de uma vez
por todas, tudo pudesse ser esclarecido, e por fim, usufruírem do direito de ter
uma vida feliz, apoiando-se uns aos outros mesmo diante do perigo e da
incerteza do que isso pode acarretar.
Não há dia ruim e nem lugar errado para sair do corpo e ir dar um rolê em outros mundos. |
O enredo transita entre a neurociência e o sobrenatural. E propositalmente nos prega peças sobre o que é real e o que não é, dando a
entender que a realidade é relativa. Tudo pode ser real. Quem nós somos? E por
que somos assim? O passado, o presente, os sentimentos, os ressentimentos, as
dúvidas, a raiva, a aceitação de outras formas de vida, viagens astrais, locais
sagrados, a sexualidade, a superação, o elo com vidas passadas e a carga
psicológica que recebemos apenas por viver a vida. E o amedrontador Deus de uma só palavra...
Ghost Round tem uma premissa interessante e única. Vale a
pena assistir aos seus 22 episódios e acompanhar a evolução de cada um dos seus
personagens. E também vale a pena abrir a mente para as informações sobre o
desconhecido e aproveitar a bela forma como foi tratada a relação do espírito
com a mente. É uma obra primorosa que com certeza vai lhe agregar algo.
Nós somos a junção de toda a complexidade do obscuro e um
pouco mais. E isso nos leva a pensar: até que ponto o ser humano está disposto
a ir para conseguir uma resposta? Até que ponto vale a pena ir?
Amei o texto, nunca vi uma explicação tão bem feita.
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