The Music of Marie: Como as Utopias (Não) Morrem


CONTERÁ SPOILERS

Escrito e desenhado por Furuya Usamaru, que tem como autorias Suicide Club, Palepoli, dentre outros, The Music of Marie - ou Marie no Kanaderu Ongaku no original - nos direciona e nos embarca em um mundo submergido em tranquilidade, harmonia e paz as quais são oriundas da deusa desse mundo, Marie, uma entidade gigantesca e mecânica que paira sobre todo o mundo, como um abraço acolhedor e reconfortante, a presença de Marie é um alento, como também uma apaziguadora para todos, por essa razão é idolatrada e amada por todos, das mais diversas formas possíveis. Dentro desse universo, há Pipi e Kai, dois dos nossos protagonistas, que são nossos olhos para nos apaixonar e vislumbrar um mundo perfeito, submersos em paz e serenidade, não há conflito tampouco emoções negativas e/ou destrutivas como ganância, preguiça e preconceito. No entanto, tudo é posto à prova pela existência de Kai, uma criança órfã peculiar dotada de uma excelente audição, é o único indivíduo capaz de enxergar e ouvir conscientemente e plenamente a tranquila melodia de Marie. 

O início de The Music of Marie é uma passagem vagarosa pelo seu mundo e pelos seus personagens, a primeira metade concentra-se estritamente em abrir o escopo do que a Marie significa para esse mundo e como as pessoas interpretam-na e se relacionam com a sua existência. Não há memórias de guerras ou violência, tudo é perfeitamente equilibrado. Sendo tudo metaforicamente e literalmente, uma engrenagem, um gigantesco mecanismo que rege à todos, e todos estão inseridos nessa conjuntura, são partes das engrenagens, que seguem um fluxo linear e perfeito. A coexistência entre outras cidades, além da Pirit, que a principal e lar dos personagens que conhecemos, é mutualística, uma relação de trocas naturais, Pirit oferece minérios, tecnologia e recebe como permuta, insumos agrícolas, frutos e outros. Além disso, em tais cidades há culturas e formas ligação com à deusa de forma distintas, por exemplo, há cidades em que há somente homens, e assim se relacionando entre si e o oposto também, no entanto, entre essas cidades há uma cidade exclusivamente e somente para procriar, além de rituais religiosos em que os indivíduos dormem a fim demonstrar seu amor, as respectivas culturas e suas formas de adoração não são profundamente explicadas ou contextualizadas, o que, obviamente, não é um problema, haja vista que servem para um panorama geral, o mundo de Marie. 




Junto à isso e mais importante, temos o fator religioso. Marie é uma deusa e é vista como uma deusa, é amada, idolatrada. Sua existência traz paz, uma estranha tranquilidade aos que ouvem. Há imagens suas por toda parte, uma igreja em seu nome, nunca a viram, mas há fé, há a certeza de que ela faz o que faz, e que rege o mundo, nos guia e nos mostra o melhor de nós, é um alento de que há, literalmente, uma entidade sobre nós que rege e protege a todos. Aliada à religião, temos a ciência, nada antagônicas ou contraditórias, ciência e religião se colocam como uma imagem conciliadora, a tecnologia, a pesquisa são, aqui, uma forma de testar os limites da humanidade e assim, aprofundando o respeito por deus. E nessa fator temos a linha percursora de tudo, Kai, ele consegue vê-la, além de ter uma espécie de amor distinto dos outros, porém não menos legítimo, sua ligação carnal, espiritual e até existencial dá todo o pano de fundo para essa história, aos poucos vamos descobrindo que nosso protagonista, em um fatídico dia que se afogou, foi achado por Marie e suas auxiliares, depois disso ele era parte de deus, de Marie.

A partir dessa revelação, além de termos um resquício de uma humanidade posterior à essa, onde há guerras, conflitos e violência, estão sob esse mundo, porém é uma tecnologia que não consegue ser ligada, velha. Havendo também uma questão, Pipi, apaixonada por Kai, tenta demonstrar seu amor mostrando algo nunca antes feito, ela vai voar, como apenas Marie consegue, no entanto, ela falha, e com isso descobrimos que - e aqui começa os spoilers - a melodia de Marie não é somente tranquilidade, também é censura. 

Após terminar essa primeira parte do mangá, onde não há conflito ou acontece alguma dinâmica a fim de agilizar ou mover a história, entramos em sua segunda parte e somos jogados em uma melodia caótica, imperfeita e deturpada. O mundo utópico e ideal onde todos são sobrepujados têm um preço, sua liberdade. Saídos de um mundo, tal qual como o nosso, de problemas imigratórios, preconceito, guerras civis, os humanos a fim de se auto conterem, criaram Marie, uma deusa que rege suas limitações e extirpe o que há de mais vil e deplorável. Como pássaros dentro de gaiolas, não poderiam progredir, crescer, não há espaços para rebeldias, para ir além dos muros, há apenas esse mundo regido unilateralmente pela música.




Pondo em cheque a legitimidade e a veracidade da perfeição desse mundo, a melodia antes bela e tranquila, ganha um ar opressivo, manipulativo, tal ambiguidade nos remete à diversas significações que utopia pode ter.

Partindo do lado harmonioso e tranquilo, utopia pode nos servir como uma ficção, uma irrealidade para fins tangíveis, um horizonte. É algo para darmos passos, pensar na utopia é pensar em como algo deve ser, a existência de um outro lugar, sendo assim, a existência do imaginário das utopias é levarmos-nos à frente. O que entra em conflito com The Music of Marie, aqui, a utopia já está estabelecida, não há passos para se andar, há apenas um mundo imutável, somos impedidos de avançar além dos limites, de voar. Pensando-se nisso, surge Fahrenheit 451 ou 1984, famosas distopias, intrinsecamente, elas são o que são pelo controle, em 451 o controle é sobre os livros, especificamente. Em 1984 temos o conceito de duplipensar e a vigilância do Grande Irmão, ao final, a prorrogativa do totalitarismo rege as distopias, o que, ironicamente ou não, é esboçado em Marie. Há controle acerca dos humanos, até onde pode ir e até sentir, suas emoções são frequentemente atenuadas e condensadas, os limites impostos pela deusa, de modo quase invejoso que até considera uma blasfêmia voar ao seu lado. 

Dito isto, a função e a ideia de Utopia podem abrir espaço para a própria existência da distopia, uma vez que temos a utopia como um fim, há a possibilidade de meios nocivos para implementações totalitárias, já que sendo uma utopia, uma sociedade ideal, tudo, em tese viável a fim de alcança-la, não importe o que custe. A liberdade de expressão, direitos humanos e civis, tudo isso poderia ser posto em cheque pelo bem 'maior'. Além disso, quem define o que é utopia ou não? Tal conceito é centrado firmemente numa sociedade perfeita, então como seria uma? Quem decidiria isso? Isso seria imutável? Por quais meios iremos chegar até lá? As utopias, tal como a melodia de Marie parecem ter uma caráter tênue, navegando entre a nocividade e a necessidade, elas podem dar margem para ditaduras, homens loucos exercendo controle sobre populações inteiras em nome de uma sociedade boa, como também um horizonte, afinal, carros e aviões já foram fantasia. Há de se pensar o preço das utopias, sua utilidade e se elas são mesmo o que são, se podem ser o que parecem ser.




Após descobrirmos que toda a sociedade desse mundo é regido pela melodia tranquila e manipuladora de Marie, e que antes tínhamos uma sociedade como a nossa, resta para Kai reafirmar ou não a existência de deus. A cada 50 anos, um individuo é escolhido para decidir o destino dessa utopia, se irá continuar ou não. Posto isso, temos uma, se não a maior questão do mangá: liberdade ou segurança? Teremos a liberdade de evoluir e crescer, porém em um mundo caótico e incerto, ou nos privaremos da nosso livre arbítrio para viver em paz e tranquilidade? O que fazer? O que escolher? E pior: um ser apenas, uma única pessoa, irá decidir o futuro da humanidade. Esse mundo vale a pena? Uma pessoa só tem esse direito, ela pode tomar essa decisão por todos? Sendo uma pessoa que viveu na tranquilidade, e além, sendo uma que viveu ouvindo os sons da vida, podendo ver a deusa, isto é, emergiu nesse mundo belo, por que ele escolheria o contrário? Viver à merce de uma deusa manipuladora ou precisamos ter a liberdade para ver se iremos falhar?

Aqui, deuses não existem, são criados por nós mesmos, uma forma de nós mesmos chegar até deus é o criando, a forma de ter alguém para nos reger é criando uma forma para tal. O destino da humanidade é regida por si mesma ou por uma força superior? Criamos a força superior a fim de nos reger, precisamos dela, do conforto e da certa de uma base, de um guia. E como uma deusa, ninguém nunca viu Marie e mesmo assim acreditam nela, com todas as forças, manifestam religiosidade e crenças acerca dela. O mundo precisa de deuses para ter paz? Em um mundo sem deuses, há apenas ódio e violência, já que é o que somos, então os sentimentos bons, paz e tranquilidade precisariam vir de alguém externo, um não-eu, um não-nós.

Na tomada de decisão, Kai escolhe o oposto, diz não para o mundo. No entanto, ele é levado ao nosso mundo, cheio de violência, corrupção, conflitos e assim o leva a reconsiderar e escolher Marie. Nesse momento é relevante perceber que ele vê apenas as partes mais mórbidas e vis esse mundo, um pouco conveniente. Sendo um marcado, pode se pensar até onde, em um mundo sem escolhas, ele teria escolha, e por que teria agora? Ao final, sob as estrelas e se desvanecendo, nosso protagonista, ou um não-protagonista, já que o mesmo nunca esteve vivo, percebemos um cinismo pairando no ar, em como as utopias se montam e o que fazem para não definharam. As escolhas não existem, se a utopia precisa existir não pode ser por vários pessoas com várias opiniões, uma só precisa decidir e assim manter a tranquilidade e o equilíbrio.  Em The Music of Marie, percebemos uma ambiguidade cínica, do que é moral ou não fazer, será a felicidade tão gostosa e definitiva? Como conseguimos construir e manter uma utopia, é moral matá-la? Ela é realmente utopia? É uma paz falsa, mas é uma paz, apesar de tudo, esse agridoce que é o mundo torna tudo mais difícil e interessante de assimilar ao final.




Ao desvanecer do Kai após tomar sua decisão, sabemos que ele sempre esteve morto, e era apenas uma crença da Pipi que ele esteve vivo, atenua uma sensação inócua, de que acreditamos e precisamos sempre acreditar, quase que piamente e cegamente para continuarmos, e nesse atravessamento quase abrupto com a informação, questionei-me se serviu realmente para alguma coisa, sim e não. No final, essa informação não nos diz muito coisa sobre  a escolha final, mas nos diz sobre Pipi, que precisou recriar e criar histórias e momentos para preencher um trauma, dar significação a tudo, dar sentido ao vazio. Sendo também um comentário até onde a fé humana vai, e o que fazemos para mante-la, The Music of Marie desorienta e dá uma sensação louca de vertigem, o mundo é sempre o mesmo e não é, as utopias aqui não morrem e a tranquilidade reina, ao menos nesse mangá podemos nutrir sentimentos bons.

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