Prepare-se para um texto bem direto e sem maiores spoilers.
Sempre é uma enorme satisfação falar de algum trabalho do Satoshi Kon. Descobri essa sensação quando dissertei sobre o seu primeiro filme Perfect Blue (1997), que alias foi o meu filme de animação preferido por muito tempo. Satoshi se destaca pela sua complexidade psíquica, personagens realistas, e por suas histórias que destecem a realidade do sonho. Um dos seus trabalhos que mais usa e abusa da imaginação é Paprika (2006), que não é meu filme predileto, mas é o melhor filme surrealista de toda a galáxia, disso eu tenho certeza. A maioria das suas obras era animada pelo estúdio Madhouse, no qual ele fazia oficialmente parte da equipe como diretor, junto de Rintaro eYoshiaki Kawajiri. Mas diferente dos outros diretores, ele mesmo era quem dirigia os seus próprios filmes.
E hoje é a vez de falar de ”Sennen Joyu”, ou o melhor dizendo ”Millennium Actress”-Atriz Milenar título em português. Esse é um filme que teve sua estreia em 2001, onde mostra um documentarista entrevistando uma atriz chamada Chiyoko Fujiwara sobre sua carreira. Até aí tudo bem, mas é em meio aos Flashbacks sobre sua carreira artística que é revelado o verdadeiro motivo que a levou a entrar nos cinemas, Chiyoko conta que ainda menina, um dia, choca-se com um homem que fugia da polícia. Ferido, ela o leva para a loja da família. No dia seguinte ela encontra-se com esse homem, que segura uma chave e entrega a ela dizendo que aquela é a chave para coisa mais importante que existe. A partir daí o homem é obrigado a fugir e Chiyoko torna-se atriz na esperança de um dia encontrá-lo novamente.
O plot básico é: ”Chiyoko é uma velha atriz que está dividindo seu passado com um documentarista”. Sim, esta é a graça do filme. A beleza desta obra está na narração. Não sei se você percebeu mas, Satoshi Kon não mostra uma árdua narração durante todo o tempo, mas mostra as cenas como se estivéssemos dentro da cabeça da sua protagonista. Não é como se a gente estivesse vendo uma fotografia de alguém, na realidade é como se pudéssemos estar vivenciando o momento ao lado dela. Um claro exemplo disso é a presença do próprio documentarista durante todas as cenas, aquilo é uma grande representação de nós mesmo. É o reflexo do público que está vendo. Essa narrativa que o Satoshi constrói é na verdade uma linguagem visual, que mesmo aparentando ser ”oculta” é um detalhe que diz muito sobre o seu trabalho.
Se algum dia alguém me perguntar ”Por que você gosta dos filmes do Satoshi Kon?” eu responderia: Porque ele não só é alguém que coloca sua imaginação nas telas em forma de desenho, mas sim alguém que introduz o telespectador em seus filmes sem que ele perceba, sem que ele relute, sem que ele questione.
A genialidade de ‘Millennium Actress’ é infinita. E o motivo é muito simples. Pra quem é fã do Kon como eu, vai encontrar algo que diz muito sobre a vida dele. Mas, Calma que já chego nessa parte.
Primeiro é bom entender que o enredo contém muitos aspectos interessantes como pano de fundo. Vamos de exemplo. Chiyoko é uma personagem que vive muitos filmes dentro de um. Essa busca incessante pelo amor faz com que ela passe por diferentes fases, e viva diferentes vidas, o que dá a brecha para que as contextualizações histórias, políticas e até mesmo culturais sejam mostradas. Por mais que o filme se concentre em mostrar mais a perseverança dela, essa perspectiva abrange muito mais que isso, e passa a ser uma maneira do Kon celebrar o poder do inimigo de Chiyoko sobre várias criações e destruições provocadas pelo homem no filme. A capacidade de projetar seu trauma emocional para os seus papéis é tão forte, que chega a ser muito difícil distinguir a realidade de Chiyoko e as recriações histórias de Kon.
Engana-se quem pensa que Chiyoko é uma personagem bobinha, e ingênua. Na realidade ela é mais do que uma simples personagem forte (digo no sentido psicológico), mas ela transmitia juventude dentro de si. O legal de Millennium Actress talvez seja isso. Além de apresentar uma narração fabulosa contada a partir de memórias, o filme ainda contava com muitas representações, não só culturais, mas também com pequenos fragmentos a cerca da própria vida do Satoshi Kon. Ou seja, ele próprio interagia com a própria obra.
Posso dizer que o Kon encerra sua obra com uma reflexão muito importante sobre o fascínio que o cinema exerce sobre nós. Do mesmo modo como nós assistimos filmes que na maioria das vezes possui uma história ilusória, assim era Chiyoko em busca do seu amor fantasma. O importante não é passar o nosso tempo vendo algo que irá mudar a nossa vida, mas sim sentir o momento. Criar laços com as pequenas experiências é o que irá nos mover como seres humanos.
Millennium Actress é muito mais que um poema de amor ao cinema em si. Mas é a representação do amor, assim como a busca de Chiyoko não tinha fronteiras, assim era o paixão de Kon pela animação, não tinha limites.
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