“O que tem o fogo? Ele é tão calmo e tão tranquilo, mas por dentro é só poder e destruição. Ele esconde alguma coisa, assim como as pessoas. Às vezes, temos que nos aproximar para descobrir o que tem dentro. Às vezes, temos que nos queimar para enxergar a verdade. ”
É por esse tipo de diálogo que posso dizer que Tekkonkinkreet é uma das animações mais surreais e humanas que eu já vi. E
definitivamente, apesar do visual colorido e cartunesco – como se tivesse saído
dos muros de São Paulo como criação dos grafiteiros Os Gêmeos –, não é nada
infantil. Ela combina com excelência a tristeza, a melancolia, o sentimento de abandono
e a raiva violenta, com a gentileza, inocência, felicidade e paz que vive
dentro de todo ser humano. Um contraste de consciências, como anjos e demônios
lutando pelo domínio de nossas almas.
Apesar de ter ido para as telonas apenas em 2006 (pelo Studio
4°C) a animação foi baseada em um mangá de mesmo nome, criado por Taiyo Matsumoto, e publicado originalmente
entre 1993 e 1994. E como acontece com toda animação com mais de 10 anos de
existência: é bem difícil de ser encontrada na internet com qualidade boa e
idioma original. Porém, a dublagem
brasileira é excepcional como sempre foi e não decepciona. O filme animado teve
como diretor o americano Michael Arias que dirigiu também o filme japonês Heaven’s
Door em 2009, a animação Harmony em 2015, e foi produtor de Animatrix em 2003,
dentre outros trabalhos.
“Falar mal das pessoas faz o coração secar” - White |
A trama conta a história dos irmãos Black e White. Os
órfãos que vivem nas ruas da Cidade do Tesouro: um lugar superpopuloso e esquecido
pela alta sociedade onde a pobreza e a criminalidade andam de mãos dadas. Os
Gatos – nome dado aos órfãos e delinquentes que habitam e comandam as ruas da
cidade – vivem pelas leis da selva, onde a sobrevivência pertence ao mais forte.
Até mesmo a polícia não sabe lidar com eles, optando por muitas vezes deixar
como está, pois, esse parece ser o fluxo natural da vida daquele lugar. O que
torna impossível não comparar a Cidade do Tesouro com a Cidade de Deus ou com
outras grandes comunidades brasileiras marginalizadas. Mas tudo isso muda
depois que o Yakuza apelidado de Rato, e que é estranhamente fascinado por
astrologia, retorna ao local com objetivo de assumir o controle da
criminalidade e de todo o território visto como “uma terra de ninguém”. Estes
elementos já seriam suficientes para o roteiro funcionar, porém, somos posteriormente
apresentados à pessoa que contratou a Yakuza: um importante homem de negócios
que revela estar trabalhando em
um empreendimento para a Cidade do Tesouro com um estrangeiro misterioso chamado Snake.
“Gatos? Órfãos abandonados, delinquentes que mandam na Cidade do Tesouro. Eles vivem pelas leis da selva. Esta cidade é o parque deles. Se os subestimar vai se dar mal. ” |
Mas a riqueza de toda a história é concentrada em peso nas
complexas personalidades de Black e White. Como os próprios nomes já deixam
claro (branco e preto) eles têm personalidades antagônicas, e ao mesmo tempo,
necessitam e fazem tudo um pelo outro.
Black é mais velho, mais forte e imbatível. Não tem medo de
nada e em certo ponto é comparado a um animal que gosta do sabor de sangue.
Enquanto White é uma criança frágil e imaginativa, que não consegue fazer nada
sozinha, dependendo exclusivamente da proteção de Black e de outros moradores
das ruas. Apesar da relação de irmãos, em nenhum momento temos alguma
confirmação de tal coisa, pois não há nenhuma menção de seus pais, apesar de
indicações possíveis – que não mencionarei aqui, logicamente.
Mas eles jamais precisaram de adultos para sobreviver, pois
a cidade é o seu paraíso. Eles não apenas a dominam, como são a representação
da própria cidade e suas ruas. Os dois a percorrem fantasiosamente dando
saltos como gatos donos da escuridão. Momentos estes que não podemos dizer se
fazem parte da imaginação dos dois – em contraste a dura realidade da vida miserável –,
ou se eles realmente têm o poder de fazer o que fazem. É um belo mergulho
fantástico na mente fértil de uma criança.
As divagações de White nos mostram sua incrível capacidade
altruísta, pois apesar de vivenciar a violência e muitas vezes fazer parte dela
com Black, seus recorrentes pensamentos representam seu constante medo da morte
e de perder seu irmão. Para ele, sempre que escurece – referência ao Black/escuridão –
a melancolia surge e toma conta de sua alma. Suas atitudes contraditórias às
suas ideias, eventualmente, acabam se mostrando necessárias para a realização
de sua paz espiritual. Ele mantém em sua mente a busca incessante pela
tranquilidade e afastamento da Cidade do Tesouro, mas sabe que isso não é
possível sem o sofrimento atual.
“Para mim a noite é triste demais. Acho que é triste porque a escuridão faz eu ficar pensando sempre na morte” - White. |
“Quando machucamos as pessoas eu peço desculpas aos deuses” - White. |
Black, entretanto, causa medo em todo mundo. Ele é uma
criança quieta de olhar pesado e extremamente imprevisível. Como se vivesse em
cima de uma corda bamba, procurando equilíbrio constante para não cair no
abismo e ceder à raiva animalesca. Os próprios Yakuzas têm medo dele. Ele
repete incessantemente que é o dono da cidade, o que nos leva a crer que toda a
sua atitude violenta é reflexo de seu propósito como o protetor da ordem. Talvez
dizendo a si mesmo que faz o que faz pelo bem de White, que aparentemente, não
conseguiria sobreviver em nenhum outro lugar a não ser na fantástica Cidade do
Tesouro.
“Pare de dizer que a cidade é sua. É um habito ruim. Esta cidade não é de ninguém” - Vovô |
Em certo momento um dos meninos que moram na rua tenta
dissuadir White a abandonar Black, pois aos olhos do menino, Black só quer
encrenca, enquanto White tem o coração e a alma pura que eventualmente serão
corrompidos por seu suposto irmão. Mas White se mostra muito mais forte do que
esperávamos e recusa a acreditar que Black possa ser uma pessoa ruim, permanecendo fiel.
Inúmeras
interpretações
Tekkonkinkreet é uma história de interpretações. Somos bombardeados com diálogos e imagens surpreendentes que servem de dicas
para possíveis motivos das coisas serem como são. E em como toda
sociedade, a sua existência é complexa e obscura. Até mesmo a ação dos Yakuzas
é suspeita, pois, mesmo com a missão de tomar o controle da cidade para o
estrangeiro Snake, eles têm ideias contrárias ao de seu chefe, entrando em
discordância sobre seu interesse em modificar a cidade para ganhar dinheiro.
Aparentemente, em suas crenças distorcidas, a cidade só terá sua identidade
enquanto marginalizada, esquecida, marcada com a pobreza e prostituição. O que
talvez seja a explicação da dominação dos Gatos: filhos da comercialização da
prostituição e violência que foram a base da criação da comunidade.
Minotauro
Como se não bastasse, há ainda a menção do Minotauro, como a
personificação da força e do poder que dominam a cidade. A manifestação do medo
na mente de uma criança. Mas também, como sabemos, o Minotauro da mitologia
grega – que foi abandonado em um labirinto – era filho de Pasífae (mulher do rei
Minos) com um touro, e devorava quem quer que entrasse em seus domínios. E
essa, em minha opinião, é a melhor definição para o personagem Black.
Babilônia
Citada por um dos policiais, a Babilônia pode nos dar uma
luz para entender a Cidade do Tesouro. Reconhecida por muitos como o berço da
civilização, devido aos avanços econômicos, sociais, culturais e políticos, foi
onde se estabeleceu o Código de Hamurábi que tinha como base a Lei de Talião,
em outras palavras, era “olho por olho, dente por dente”. Nada diferente do que
vemos acontecer na animação ou nas comunidades marginalizadas de nossa
sociedade. Teve seu auge e sua decadência documentada na bíblia e ainda hoje é
cercada de mistérios e interpretações.
É dito também que a antiga Babilônia era um lugar repleto de astrologia e adivinhação. Em Ezequiel 21:21 temos um relato do rei da Babilônia recorrendo à adivinhação para decidir-se se atacaria Jerusalém ou não:
"Pois o rei de Babilônia faz uma parada a fim de empregar a adivinhação na bifurcação da estrada, onde os dois caminhos se dividem. Ele sacode as flechas. Consulta seus ídolos; examina o fígado."
É dito também que a antiga Babilônia era um lugar repleto de astrologia e adivinhação. Em Ezequiel 21:21 temos um relato do rei da Babilônia recorrendo à adivinhação para decidir-se se atacaria Jerusalém ou não:
"Pois o rei de Babilônia faz uma parada a fim de empregar a adivinhação na bifurcação da estrada, onde os dois caminhos se dividem. Ele sacode as flechas. Consulta seus ídolos; examina o fígado."
Talvez a obsessão de Rato – antigo "dono" da Cidade do Tesouro – com a astrologia tenha sua base nos primórdios da sociedade.
Conclusão
Tekkonkinkreet nos mostra a força interior das crianças,
que mesmo fadadas à desgraça, superam com êxito questões que adultos não
conseguiriam. A relutante e complexa luta interna que todos nós temos
diariamente e como conseguimos vencer a escuridão com a ajuda e apoio das
pessoas que amamos. E que mesmo em momentos onde tudo parece perdido em razão do
duro choque da realidade, haverá sempre uma luz inocente e imaginativa
dando-nos força para continuar ou mudar perante as dificuldades da vida.
Por mais conclusivas que sejam as interpretações da obra, uma dúvida ainda se mantém naquele cantinho de meus pensamentos: por que temos tanto medo de ver além da escuridão?
Por mais conclusivas que sejam as interpretações da obra, uma dúvida ainda se mantém naquele cantinho de meus pensamentos: por que temos tanto medo de ver além da escuridão?
Obs.: Procurei o mangá loucamente, mas não consegui
encontrá-lo para ler. Espero, pacientemente, pelo dia que será reimpresso aqui
nessa terra nem um pouco esquecida pelos deuses.
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