*Atenção: o texto possui alguns spoilerzinhos, leia por sua conta e risco.
Para quem já está familiarizado com as obras do diretor, este filme é um deleite. Para quem caiu de paraquedas, este filme é uma verdadeira maluquice colorida. E não é pra menos. O longa parece que veio da França, por causa do clima e da arte sofisticada, no entanto, a história logo revela que isto só poderia ter saído do Japão, por conta do humor e do desenrolar do enredo. Na primeira cena também já se nota a mente por trás dessa engenhoca: cores fortes, personagens outrora sem rosto, metáforas e cenários geométricos, não poderiam ter saído de outra pessoa que não fosse por Masaaki Yuasa. E já que falei em rostos e geometria, os fãs poderão matar a saudade de Tatami Galaxy. Não se trata de uma continuação direta do anime, mas sim, de semelhantes personagens em outra situação. Sinceramente, esse elenco pode ser explorado infinitas vezes e eu jamais me enjoarei. Yuasa sabe como fazer o terreno ser fértil sem soar desinteressante.
Na história temos um jovem rapaz chamado Senpai que quer criar situações para conquistar uma garota chamada Kurokami no Otome, tudo como se fosse por acaso. Se ela está no supermercado por exemplo, ele vai estar lá fingindo que está fazendo compras só pra acabar se esbarrando com ela, como se fosse uma grande coincidência do destino. O filme já começa nisso, com ele jantando e bebendo no mesmo local que ela. Porém, quando o 'comes e bebes' acaba, eles decidem terminar a festa num bar, o jovem rapaz tenta segui-la mas acaba sendo sequestrado temporariamente e tendo sua cueca roubada. A garota que está enchendo o caneco antes da bebedeira principal ali perto acaba interagindo com um senhor pervertido, e num dialogo casual tira algumas lições. Mas tudo isso só é preparacão de terreno, em outras palavras, apresentação de personagens e tudo mais. O conflito principal vem a seguir, com o desejo da garota de recuperar seu livro de infância. Com isso, temos um clímax consistente, do rapaz tentando recuperar esse livro antes dela para presentia-la, como uma forma de conquista não direta, apenas por acaso, assim...sem querer.
*Desculpa a quantidade de imagens nesse post, esse anime é tão lindo que não resisto*
Este filme é totalmente irônico. Enquanto o garoto tenta criar situações para se esbarrar com ela, o destino faz com que ela sem querer vá até ele, e por conseguinte, ele que acaba tendo que fugir para que ela não o veja, como na cena em que eles coincidentemente estão na feira de livros usados. E já que estamos falando em coincidência, o garoto acaba se esbarrando com os mesmos personagens que a garota por ventura interage ali, como o senhor que coleciona arte erótica e o menino que derruba o sorvete na calça do protagonista, quase que simulando uma ereção - o que aí já entra outra característica do filme, de criar simbolismos e etc, como o vestido vermelho da protagonista também, dizendo claramente que ela representa ali o amor. De quebra, ainda temos o menino do sorvete explicando pra protagonista que todos os livros estão conectados. Numa cena ali, por acaso. Se o público que está assistindo ainda não tinha notado isso na metade do filme, o garoto tá ali pra chamar a atenção para o que realmente importa. E o que é mais legal: de uma forma não explícita, porque ele está se referindo aos autores de livros. Mas a colocação acaba servindo para as relações cotidianas também.
Tudo está conectado. Tudo surgiu de uma influência de outra coisa. Direta ou indiretamente. Estamos todos no mesmo barco, ou o melhor dizendo, estamos todos no mesmo trem.
A narrativa deste filme é ligeira, portanto, é necessário tomar bastante cuidado para não ficar perdido. Para você ter uma ideia, quase na metade do filme, o rapaz já tinha concluído sua missão de recuperar o livro de infância de sua amada. E o mais louco de tudo; não de uma maneira fácil. O diretor usa novamente o simbolismo pra conseguir chegar aonde ele quer de forma enxuta, sem enrolações. Gosto muito da cena dele participando de um torneio esquisito comendo sushi (?) picante, literalmente atravessando o inferno pra conseguir o livro almejado. De fato, pra conseguir o que o que se quer, temos que comer o pão que o diabo amassou, e nos provar melhores. Estamos todos passando por competições. Concorrência. E isso puxa o próximo clímax da história; mudar o destino. Quando o problema anterior se conclui rapidamente de forma simbólica, totalmente por acaso - olha o filme brincando com a gente de novo - já temos outro à vista: impedir que a garota beije o Major Cueca na peça de teatro, ficando assim no lugar dele. Um plano louco e aparentemente aleatório? Totalmente! Mas o foco está no que a história está tentando passar. De que tudo está sim conectado, de que não adianta construir coincidências porque quando se deseja profundamente o destino haverá de juntar as peças do tabuleiro, se assim foi predestinado. Porém, temos o poder de mudar isso se houver esforço por parte do requerente. Quando o garoto sai correndo para invadir a peça de teatro, virando quase um carrinho de formula 1 nitrogenado pelo amor, além de ser bem humorado, é um simbolismo sensacional de ir lutar contra o destino. Às vezes não basta querer e desejar que o universo faça o resto.
Falando em humor, é sensacional quando o filme permite si zoar. A cena do teatro, onde quase transforma o anime em um musical, é estranhamente cômico no melhor sentido da palavra. Parecia que o filme estava rindo de si próprio, com a quantidade excessiva de falas cantadas por minuto. A comédia não é nada exagerado. É algo sutil como no filme Amelie Poulan de Jean-Pierre Jeunet. Embora use de alguns elementos exagerados como por exemplo na hora em que eles engolem alguma coisa e a garganta aumenta de tamanho, isso só fica no visual. Porque na história mesmo não há excessos. E já que toquei no assunto de visual, o estúdio responsável Science Saru fez um belíssimo trabalho na animação, captando toda a loucura, atmosfera, fluidez que um anime do Yuasa pede. É um anime muito gostoso de assistir, meus olhos brilharam do começo ao fim com os ângulos, formas, cores quentes e frias, trejeitos, sequencias e etc.
O romance do filme não é algo do tipo pra se emocionar, ou coisa parecida. Na verdade, eu diria que ele é bastante frio. E não é no sentido de que ninguém toma as rédeas para se declarar, como é o caso do jovem Senpai. Mas é no sentido de ser apenas uma busca desenfreada em tentar conquistá-la, sem ao menos chegar à executar o plano de fato, deixando somente para o final. Todo o trajeto tem um tom humorístico, porque existem novos obstáculos sempre surgindo. E essa é a graça (não no sentido de dar altas gargalhadas, mas sim de se manter entretido).
Essa falta de interação entre os dois personagens principais, só acontece durante a peça de teatro - tirando o começo dos flashbacks dele perseguindo ela, e o final. No entanto, eles se cruzam sem querer no mesmo cenário várias vezes, porém, sem uma troca de diálogos mais trabalhada (o soco que ela dá nele quando aparece seminu nem conto como interação, apenas como alívio cômico). Mesmo assim, é curioso o modo como roteiro brinca com a nossa expectativa.
O desfecho traz algo satisfatório ao nos colocar dentro da mente do Senpai se indagando numa espécie de tribunal de vários eu's (essa parte me fez lembrar de Divertida Mente), do porque dele gostar dela. Interessante também quando traz a tona o contraponto da paixonite do Major Cueca, servindo assim, como ponto de reflexão para o personagem se aquele amor tinha fundamento. O filme encerra de forma sublime, ao fundir a fantasia com a realidade, levando a protagonista pra dentro da mente do Senpai, brigando com os seus eu's infinitos, numa tempestade de vento. O final não poderia ser mais abstrato e coerente consigo mesmo. Senti até uma referencia na cena onde o vestido da garota é levantado em meio à ventania, me fez lembrar na hora do filme ''O pecado mora ao lado'' comédia romântica de Billy Wilder de 1952 , uma das cenas mais famosas do cinema.
Enfim. Se não viu esse filme ainda, não sei o que está fazendo aqui ainda. Garanto que você não caiu nesse post por acaso.
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