"Aff... olha quem tá vindo." |
Algo se aproxima sem ser notado e se aloja, multiplicando-se
instintivamente a ponto de fazer parte da vida pacata de uma pequena cidade. Aos poucos, acontecimentos isolados vão dando forma a uma
enorme espiral de tragédias, tragando tudo e todos no horror mais bizarro que a
mente humana poderia imaginar.
Uzumaki (espiral) começa com a sua personagem principal,
Kirie Goshima, narrando os acontecimentos que se sucederam na cidade
costeira de Kurôzu (redemoinho preto), desde o dia que as coisas começaram a
ficar estranhas. Ou pelo menos, desde o dia em que ela percebeu que estavam.
Ao sair de casa atrasada, Kirie corre para encontrar com seu
namorado, Shuichi, na estação de trem e no caminho, logo após presenciar um
pequeno tornado, se depara com seu sogro agachado em um beco, encarando de
forma compulsiva um caracol na parede. Após tentar falar com ele, e fracassar, Kirie
decide continuar seu caminho até a estação. Ao comentar com seu namorado sobre
o que acabara de ocorrer, que para sua surpresa concorda que o pai esteja
estranho ultimamente, é também surpreendida com um pedido dele para os dois
fugirem juntos daquele lugar. Shuichi diz que tudo na cidade está incomodando-o
a ponto de achar que pode enlouquecer se ficar lá por muito tempo.
Obviamente os dois não fogem e a partir deste dia tudo
começa a se intensificar. A obsessão do pai de Shuichi começa a ficar
preocupante, pois ele passa a maior parte do dia dentro de um quarto admirando
várias peças em espiral. Seu novo comportamento o faz ficar irreconhecível. Os
acontecimentos vão evoluindo e então somos bombardeados com a primeira imagem
bizarra e horrorosa – e também maravilhosamente bem desenhada – da forma como ele
morre.
Não se preocupe, isso não é um spoiler significativo. |
Depois disso, seu corpo é cremado e a fumaça da cremação
toma conta do céu formando um enorme redemoinho negro, horrorizando todos os
presentes no funeral. Sua mãe fica em estado de choque que perdura por dias, a ponto de desenvolver uma fobia extrema de
tudo que remete à forma espiral e nos fornece outras ilustrações
repulsivas.
Aliás, ler ou assistir qualquer coisa relacionada a Junji
Ito é pedir para presenciar coisas asquerosas e repugnantes, que parecem surgir
de uma parte obscura e primordial da mente do ser humano, como um medo que
todos temos, mas não sabemos. Apesar de ter como inspiração mestres do Horror
como Kazuo Umezo, Hideshi Ino e até mesmo H.P. Lovecraft, Ito já declarou em
sua entrevista com Naoki Urasawa, de que muitas de suas ideias vêm de medos
comuns que ele tinha na infância: medo do escuro ou de lugares antigos e
abandonados.
Conforme a história avança muitas outras coisas impensáveis
começam a acontecer, desafiando as leis da física e a sanidade dos cidadãos. E
por mais extraordinário e impossível que seja, as pessoas na cidade parecem não
se abalar muito, como se o que estivesse acontecendo, apesar de inacreditável
no momento, se tornasse algo normal depois. Todos menos Shuichi e Kirie, que
mesmo estando envolvidos na maior parte dos infortúnios, permanecem unidos e
lúcidos, como se estivessem sendo salvos apenas pelo apoio um do outro.
Parece até sobrenatural, mas há algo nas histórias de Junji Ito
que carrega mais emoção do que realmente aparenta. Mesmo em cenas de completa desgraça,
há um sentimento cômico, que por um momento consegue fazer o leitor se sentir
culpado por achar graça de algo tão horrível, mas logo em seguida o traz de
volta à sua realidade, fazendo-o raciocinar sobre como aquilo é realmente
improvável. Eventualmente torna-se impossível não admirar ainda mais o poder da
arte aliado à incrível habilidade de contador de histórias que Junji Ito tem.
Não à toa, já que é considerado um mestre do Horror.
Na edição lançada pela Devir em 2018, que está maravilhosamente
editada e bem apresentada, – tirando alguns poucos errinhos de digitação que poderiam
ser facilmente evitados – temos também uma análise bem interessante após o fim
da história, feita pelo ex-diplomata e agora escritor, Masaru Sato. Sato faz um
paralelo entre a maldição da espiral e o capitalismo frenético dominando o
mundo, principalmente no Japão dos anos 90 em diante. Em sua reflexão, aponta
essa obsessão e controle de algo sobre a massa, como um mal que devemos estar
atentos. Ainda, segundo Sato, ler Uzumaki
é uma boa forma de entendermos aquilo que Karl Marx quis dizer em O Capital.
Concordando ou não com essa visão, é inegável que Uzumaki é
uma obra essencial e deve ser apreciada por qualquer fã, ou qualquer pessoa que
queira ter uma experiência incrivelmente perturbadora, e que ao fim, a fará
refletir o quão fina é a fronteira entre o prazer e o horror. Ou pior, ficará
incomodada a ponto de nunca mais ver espirais com os mesmos olhos. De uma forma
ou de outra é uma experiência transformadora.
Até a próxima!
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