A fábula fáustica em BIBLIOMANIA




CONTERÁ SPOILERS


Bibliomania é uma história em quadrinhos publicada entre 2016 e 2018 com roteiros de Obaru e desenhos de Macchiro que tem como protagonista Alice, uma jovem garota, que acorda num quarto inteiramente branco em um misterioso Hotel. Ao acordar, de imediato, ela é recebida por uma Serpente, avisando-a que este local é onde todos os desejos são atendidos, contudo, como única regra, ninguém é capaz de sair de lá. A partir disso, a narrativa aborda questões como verdade, realidade, sonho, tudo isso tendo em vista a Era da Informação, tão pungente no século 21, especialmente neste período “pós-Fake News”. E, além disso, apresenta-se como uma fábula moderna do poema trágico goethiano de Fausto e Mefistóteles.


Fausto é o protagonista de uma lenda alemã na qual o personagem-título faz um pacto com o demônio. Como consequência disso, Fausto obtém uma sede insaciável pelo progresso e pelo dinamismo. Embora haja diferenças históricas e sociais em cada Fausto, é perceptível uma certa linha temática recorrente.

Assim sendo, a figura do Fausto tem sido proeminente desde que se começou a pensar em cultura moderna, a história é recontada em diversas línguas, e em todos os meios possíveis, de livros a ópera; de poesia lírica à tragédia; uma narrativa completa e absurdamente tentadora para todo e qualquer artista ao redor da história e do tempo. A sua figura, no entanto, tem certa constância, quase sempre sendo retratado como um intelectual inconformista, à margem do mundo; em todas as versões, igualmente, têm um tom tragicômico ao mostrar o momento em que Fausto ‘’perde o controle’’ sobre sua sede de conhecimento, que parece criar uma vida própria, dinâmica, feroz e destrutiva.

Dito isto, tomamos como exemplo o Fausto de Goethe, publicado e escrito entre 1770 e 1831, que tem como pano de fundo um princípio da Modernidade que vivemos até os dias de hoje. Este período moderno se pauta, respectivamente, por dois fenômenos políticos, um, a Revolução Francesa, e o outro, a Revolução Industrial. Enquanto revolução, estes momentos se pautam na prerrogativa da negação. Isto, pois para um ato revolucionário se armar é necessária uma constante recusa do estado atual das coisas, que, segundo este princípio, carrega corrupção e arcaísmos. Dessa maneira, esta autoconsciência revolucionária constitui-se da negação permanente do presente, tendo em vista o progresso.

Ok, vamos para o mangá propriamente dito, pelo amor de deus.



Acordando no Hotel, o primeiro impulso de Alice é sair custe o que custar daquele lugar, apesar das promessas de felicidade e desejos sendo eternamente realizados. Nisso, a Serpente avisa que ela é a hóspede nº 421, e que ela apenas conseguiria se retirar do local caso passasse pelos demais quartos, chegando ao 000. No entanto, conforme ela atravessa os quartos, o seu corpo vai se apodrecendo, impedindo-a de sair. Além disso, parte dessa trajetória de Alice é vislumbrar e conhecer os hóspedes dos outros quartos e descobrir o que é aquele Hotel e para qual fim se dá sua existência. Continuamente, para fins da análise, é preciso revelar as maiores revelações do mangá. Primeiro, a partir de um determinado personagem é descoberto que não é um Hotel, e sim um livro; segundo, a Serpente, de certo modo, personifica o Livro e tem como objetivo chegar até página 666, porque, a partir disso, ele irá incorporar todas os indivíduos, podendo, dessa forma, sair dessa ‘’casca’’ e ir para a realidade; e, terceiro, Alice é um livro também, mas ela é a Mãe de todos estes livros, a entidade primordial.

Antes dos acontecimentos do mangá, a Alice era uma garota fraca e doente cuja experiência da realidade estava atrelada e restrita apenas à sua capacidade extraordinária de memorização. Dessa forma, ela leu todos os livros da humanidade, angariando e processando essas informações; e, a partir disso, decide criar o livro primordial, o Livro da Verdade, que iria abarcar todo o conhecimento existente. Ao fazer isso, Alice incorpora-se com o Livro, se tornando uma coisa só, e parte para assimilar todos os seres desta realidade material e objetiva.




Enquanto enferma, Alice retoma aspectos do Fausto goethiano, que, à margem da sociedade, se vê trancado num quarto escuro e solitário, sem contato com o mundo, tendo apenas o conhecimento derivado de livros para alimentar a sua sede insaciável. Neste primeiro momento, paralelamente ao Fausto, Alice tem apenas contato com a realidade em sua forma ‘escrita’, codificada, por assim dizer, com isso, estando impossibilitada de mover-se através do mundo, experimentando-o. Igual ao Fausto, a menina-livro também carrega esse inconformismo intelectual acerca do conhecer o mundo. À medida que Alice se seduz pelo livro e se deixa ser assimilada, Fausto faz um pacto com Mefistóteles, que lhe oferece conhecimento em troca de sua alma, visto que eles não se impedem diante do estado das coisas.

A dupla fáustica, então, compartilha deste mesmo princípio da proibição do deter-se, que se configura como uma busca desenfreada pelos seus anseios mais íntimos. Fausto, em seu furor dinâmico, deseja assimilar o mundo e moldá-lo à sua imagem, efetuando um processo de colonização por toda parte, imbuindo a realidade de progresso e desenvolvimento. Dessa forma, ele nega de modo incessante o seu aqui e agora, isto é, a realidade momentânea, enquanto almeja um ainda-não-existe, tudo aquilo que não está em suas mãos e que ele não possui. Logo, a partir deste espírito da negação, nada que existe é capaz de suprir suas exigências, com isso, tudo tem de perecer, para dar lugar ao novo, ao que não existe ainda. Como, por exemplo, ao controlar o Mar da região, colocando construções gigantescas de diques e canais; ou, mais interessantemente, no momento em que entramos no antigo laboratório do Dr. Wagner, antigo empregado de Fausto, em que há a produção técnico-industrial de um ser humano, que se constituí um projeto por excelência do que é a Modernidade do negar, na qual recusa-se a existência do que é natural, substituindo-a por uma segunda criação, essa de uma ordem de produção moderna.

Já Alice não se detém em transformar tudo à sua volta em palavras e páginas para compor a sua enciclopédia da existência. Negando constantemente a realidade objetiva em prol de incorporar a própria existência, visto que a ‘simples’ experiência do real não dá conta de satisfazer as suas necessidades. Interessantemente, este movimento de uma certa lei do dinamismo fervilhante é materializado na própria estrutura narrativa. Esta estrutura se dá por duas vias: primeiro, contrário aos mangás, a leitura se dá no modelo ocidental, da esquerda para direita; e segundo, todo desenvolvimento do mangá se dá a partir da Alice movimentando-se no Livro, de página em página, de quarto em quarto. Estes dois modos transmitem esta ideia de que a Alice está constantemente se movendo para frente, mostrando que a protagonista não vê a sua felicidade localizada no aqui e agora, mas no próximo espaço, num próximo tempo. Daí a matéria, o tema, é direcionado e abordado não apenas via enredo, mas na própria composição do mangá. Portanto, Aline expõe seu capricho ao tentar capturar e devorar cada parte da realidade, transformando tudo que é ‘’Outro’’ em ‘’Ela’’, o que é outra coisa numa mesma coisa.




Além disso, como dito, Fausto de Goethe foi escrito num período caracterizado por uma Modernidade ordenada no princípio da negação, em que a realidade social-histórica jamais pode cair na imobilidade. Com isso, Fausto serve como uma espécie de materialização literária desse modelo de progresso e de desenvolvimento que nunca é satisfeito e que não tem limites. Paralelamente, Alice pode ser interpretada como uma figura que aponta essa dinâmica fáustica e irresponsável, mas também, e principalmente, a impossibilidade da nossa época de discernir, lidar e se envolver com o que é real e irreal.

Sutilmente e propositalmente ‘ignorado’ neste texto, uma das questões mais pertinentes de Bibliomania é o fato de que este Livro é uma espécie de Reino do Sonho, onde todas as pessoas estão eternamente vivendo os seus desejos mais profundos e íntimos. Temos uma mulher que se torna um pássaro; um homem que come o tempo enquanto vive com a sua família; um adolescente, vítima de bullying, que se vinga sem parar de seu agressor e cúmplices dessa violência; e entre outros. A premissa que rege todas estas pessoas é de que o mundo no qual elas viviam era cruel e vil, o que as colocava distante de seus sonhos e desejos e os quais só poderiam ser realizados fora do mundo. Ademais, também subentende nesse cenário que eles não apenas usufruem do que não foram capazes em ‘’vida’’, mas também irão ficar para sempre nesse estado, ignorando totalmente a ideia de tempo, em que há um começo, meio e fim, um movimento. E, mais precisamente, todas as páginas têm somente uma pessoa.

Com efeito, esta conduta ilustrada expõe uma negação do real e do que é constitutivo para sê-lo de fato. Primeiro, enquanto não há passagem de tempo, evita a possibilidade para a mudança e que possa ocorrer um processo natural de começos e fins, assim, a realidade pressupõe alterações. Além disso, um personagem deseja devorar o tempo, porque, a seu ver, foi justamente esta passagem temporal que o retirou de seus sonhos e desejos; outro exemplo é a garota que quer ser eternamente bela, pois a tendência é uma mudança de estado, ela nunca poderá ser a mesma, o tempo todo. Segundo, nesse mangá, a realidade pressupõe alteridade. O real existe a partir do ‘’outro’’, porque é a partir da comunhão e das relações que é possível gerar alterações e mudanças. Uma vez que estão imersos em devaneios, neste momento onírico não há um ‘’outro’’, apenas extensão de um ‘’Eu’’, imagens que tentam mimetizar, de forma falsa, o real. Não é à toa que quando a Serpente consegue vir ao nosso mundo, o que ela percebe primeiro é que não há pessoas, o que pode direcionar para o fato de que, na visão dela, a realidade é formada pela existência de um indivíduo que não é ela.

Também um momento que expressa precisamente esta relação entre ficção e real, é quando, ao assimilar o Livro, a Alice entra numa guerra contra a humanidade, o que ocasiona uma série de informações verdadeiras e falsas a seu respeito, que se contradizem, que logo se alteram. Aqui é exposto essa dinâmica da nossa sociedade atual dominada pela informação, em que a negação dos dados é levada a níveis inimagináveis. As imagens e notícias mal conseguem tomar forma, pois de imediato já são descartadas e desvalorizadas. Cria-se, portanto, um fluxo dinâmico e veloz de dados, notícias, imagens que se desfazem rapidamente e a linha do que é verdadeiro e falso torna-se tênue. Com isso, é interessante perceber que um modo de lidar com a realidade tangível, e, consequentemente, as suas informações, contradições é eliminar 'outro'. Noutras palavras, à medida que elimina qualquer coisa que não seja 'Eu', há um novo ordenamento da realidade, agora mais simples e de fácil assimilação, uma vez que num sonho individual tudo é 'verdadeiro', pois parte de uma fonte só, de um indivíduo apenas. Não é equivocado pensar que além deste ímpeto devorador, Alice deseja unificar todas as informações nela, simplificando o mundo como uma forma de lidar com a realidade.





Por fim, um outro elemento interesse desta narrativa é a presença da Serpente, que justamente imprime algumas características desta sedução ambígua e, principalmente, levar o personagem à negação. A Serpente, como Mefisto, aparece, primeiramente, como esta criatura estranha, induzindo Alice a fugir da realidade e tentando manipulá-la, à procura de alguma fresta inocência, fraqueza da qual ele pode usufruir. A dinâmica, contudo, é cortada visto que há uma alteração de quem é que sabe mais, como também o fato de ela, a Serpente, queria absorve-la para se tornar completa, porém, a garota-livre buscava fazer a mesma coisa. Desse modo, Alice parece integrar tanto a figura de Mefisto quanto de Fausto. Interessantemente, isto abre porta para o fato de que todos em Bibliomania são Alice. De se ver na mulher, que doente, foi abandonada, desde a que sonhava em se tornar um pássaro, ela reúne todas estas características dos personagens com os quais ela lida e interage ao longo de todo o mangá. Esta interpretação traz a ideia de que, ao final, tudo é um sonho, pois, enquanto simples manifestações de um 'Eu' de Alice e o fato de que o tempo não passa, tudo é mera irrealidade vívida por esta garota solitária.

O que faz com que a cena final retome a primeira, quando Alice acorda num quarto branco, neste lugar de sonhos. Deixando de lado a possível interpretação de tudo que é um sonho, desta vez, a menina-livro tornou o real em sonho. Resgatando como o mangá define o que é realidade e o que não é, vimos a importância da alteridade e da passagem do tempo para tal. Então, ao assimilar o mundo todo e ser uma pessoa imortal, ela transformou a realidade objetiva e tangível em mera extensão de si mesma, mostrando que não era tão diferentes dos outros hospedes que igualmente buscam uma maneira de viver somente os seus desejos, interminavelmente. 




Portanto, enquanto dispositivo ''quadrinistico'', Bibliomania capta e dramatiza as estruturas sociais e políticas, transformando as dinâmicas da pós-modernidade em escrita e desenho. Ao passo que monta uma espécie de um espetáculo onírico pautado na busca pelo conhecimento, enquanto parte para uma reinterpretação do poema trágico de Fausto, que se localiza como uma jornada da negação incessante de tudo, à medida que busca transformar o mundo à sua imagem. Assim, esta matéria social de um mundo difuso e sem conturno flui ao longo da trama, se refletindo numa (re)formulação das formas de agir e pensar numa realidade confusa e em como Alice não se detém para retranformar o mundo e devorá-lo, ao mesmo tempo. A estrutura, então, parece vir a forma de denúncia do agir errátivo e devorador de Alice, sem medir consequências e a existência dum ''outro''. Ou seja, Alice expõe e personifica este procedimento de negação da pós-modernidade em seu funcionamento de incompletudes e velocidades e, torna palpável, no mesmo passo, a tragédia de uma garota que não sabe estar no mundo.

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