''Koe no Katachi'' é muito mais do que uma história sobre Bullying

Adaptação do excelente mangá para o cinema, capta a mensagem da obra original, num belíssimo espetáculo bilíngue.

Uma das formas de violência que mais cresce no mundo; o Bullying jamais deve perder o seu lugar de debate na sociedade. O que antes poderia ter sido considerado uma brincadeira saudável e muitas vezes, inofensiva, hoje o tema recebe destaque até mesmo em diversas séries de TV. No entanto, mesmo que haja a consciência de que este é um problema real, com o avanço da internet por exemplo, esse tipo de prática cresce com mais força, visto que qualquer pessoa pode usar o anonimato para suas brincadeiras sádicas. A consequência, não poderia ser pior. Enquanto alguns optam pelo suicídio, há também aqueles que simplesmente se transformam em seus próprios agressores, e passam à praticar o mesmo ato em outras, tornando assim, o comportamento num ciclo. Existem também aqueles que não tomam atitudes drásticas como essas, de suicídio ou agressão, no entanto, não cuidam de suas feridas emocionais, e passam muitas vezes, à concordar com tais tipos de afirmações, abraçando assim, a auto-estima baixa, pessimismo, depressão, e todo tipo de dores emocionais.

No cinema, já vimos diversas histórias que se transformaram em clássicos do terror, como ''Carrie, a Estranha'' ou o sueco ''Deixe Ela Entrar''. Dramas como ''13 Reasons Why'', ''Riverdale'' e ''Big Little Lies'' também estão aí para reacender o debate, seja em uma abordagem mais tímida ou não. Nos mangás o assunto continua, alguns exemplos bastante conhecidos; ''Vitamin'', ''Onani Master Kurosawa'', ''Limit'' dentre tantos outros, tratam o debate muito bem. No mais recente filme Koe no Katachi (ou não tanto assim, estreou ano passado no Japão) a questão do bullying não poderia ser mais impactadora. Nela, temos a visão do agressor. Mais precisamente, do garoto Shouya Ishida que guarda uma ferida emocional da infância. Porém, ele se arrepende de todas as maldades que praticou em sua colega de sala Shōko Nishimiya, que sofre de surdez. Agora adolescente, ele busca uma forma de fazer às pazes com seu passado, e com a garota que foi vítima do bullying.

Koe no Katachi é um lindo espetáculo de redenção. Apesar de ser um slice of life, leve e simplório, ele é tão assustador como qualquer clássico de terror citados anteriormente ou tão dramático como qualquer série de TV da atualidade. Não se engane com os tons coloridos, de dias ensolarados, aqui temos um enredo bastante acinzentado. Por mais que a trama não use a morte para mostrar o impacto do bullying, seja por parte da vítima como do agressor, ela é pesada por mostrar que se redimir é mais difícil do que se pensa. Não é um simples ''Foi mal aê''ou ''Perdão pelo vacilo'' que resolverá tudo.


O filme animado deriva do mangá que começou como one-shot em 2011 na Bessatsu Shounen Magazine (a mesma de Shingeki no Kyojin). Em 2013, a história se converteu numa série semanal na revista, conseguindo assim um público fiel, e ganhou mais capítulos. O mangá finalizou com 07 volumes, e é de autoria de Ooima Yoshitoki. No Brasil, ela chegou recentemente pela editora NewPOP, e eu recomendo demais (Vi hoje que saiu um texto bem legal sobre o mangá no Chuva de Nanquim, vale a pena à leitura). Embora eu considere o quadrinho tão importante como o filme, hoje me focarei mais no longa animado da Kyoto Animation. Mas o selo ''relevante'' vale para os dois.


É extremamente difícil dirigir um filme de 2 horas tendo como base 62 capítulos. No entanto, acredito que Naoko Yamada se saiu relativamente bem na adaptação. Tão bem, que eu poderia comparar com o mais recente do Makoto ''Kimi no na Wa''. Porém, por mais que os dois filmes tenham certa familiaridade na questão de retratar a adolescência, eles são diferentes na execução; enquanto um usa o artificio da fantasia ao seu favor, com direito à cenas bastante agitadas e tal, o outro é realista até demais, e não busca ação demasiada. É logo no começo que o conflito começa, e da metade pro fim, vemos um explorar de personagens e sociedade. Sim, é correto afirmar que no mangá os personagens secundários tem bem mais destaque, entretanto, isso não atrapalhou no filme como um todo. Talvez num anime de 13 ou sei lá, 24 episódios, a história se enriqueceria ainda mais com a participação deles, mas para um filme de 2 horas, considero quase um triunfo.     

Ao contrário do que algumas pessoas acharam, eu não senti raiva do garoto Ishida cometendo bullying com a garota Nishimiya, e nem achei que ela talvez tenha se feito de vítima demais. O primeiro sentimento que me tomou, foi de pena pelos dois. Pena, porque os dois são presas do vínculo social bosta imposta para eles. Isso se percebe quando nem o professor tenta defender a garota, ou ajudá-la em momento algum, junto com o diretor que só aparece quando a merda acontece só porque a mãe da menina reclamou, junto com toda a classe, que ajudou a moldar a personalidade do Ishida para o valentão da turma. É de se emocionar com a situação dois. Um dos momentos marcantes é quando os dois brigam na sala de aula de tapas e chutes, é doloroso ver não pela violência física, mas sim pelo estado psicológico em que cada um se encontra. Ishida sendo levado pela maré de ódio com que foi ensinado, e Nishimiya sofrendo com a consequência disso.

Gosto de como os papéis se invertem depois, talvez nem tanto porque Ishida passa a fazer o papel de Nishimiya e o feitiço vira contra o feiticeiro, mas por causa que isso transforma num lindo - ao mesmo tempo triste - espetáculo de elos que começa a sair faíscas. É por isso que eu gosto de Koe no Katachi. Ele mostra a realidade sem apelar, sem apontar o dedo na sua cara para se sentir culpado ou coisa parecida. É poético, pois cada cena soa natural. O sentimento não é imposto para você, mas você é que procura por ele. É impossível não puxar pela memória, alguma situação semelhante, em que sentimos as mesmas coisas. Àquela vontade de ser ouvido por alguém, de pedir perdão, ser uma pessoa diferente, ou o que seja. Aqui, o que está sendo dito é universal, e ao mesmo tempo, particular.





Eu costumo dizer, que uma das coisas mais bonitas da vida, é quando você entende a outra pessoa. Se parar pra pensar, é uma coisa difícil de se fazer. É uma coisa tão simples, porém, tão complexa. E eu não digo tão no sentido de passar pelas mesmas situações, mas sim de respeitar o outro como ele é. Se você consegue sentir compaixão, e principalmente, se colocar no lugar do próximo, se considere um sujeito de sorte, pois existe, e infelizmente acredito que sempre existirá, pessoas que não consegue estar alinhado com a outra. É muito fácil odiar o que é diferente. Não é atoa que esse é o motivo de tantos ataques terroristas pelo mundo. Seja ela envolvendo morte usando religião como desculpa, ou um simples apelido escroto em alguém porque é gordo ou magro. A violência está aí em diferentes escalas e categorias, mas todas elas apontam para a única causa. Parece tão bobo - e de fato é - aceitar que existe diferenças e encontrar nelas um ponto em comum, mas para alguns isso é um martírio.

Isso me leva a elogiar a trajetória do garoto e então adolescente, Ishida. Quando ele enxerga um X no rosto dos seus colegas de classe, se sentindo totalmente sozinho e excluído, e quando aos poucos cada X vai caindo, é simplesmente lindo e emocionante. No momento que ele consegue olhar para as outras pessoas, é quase que uma sinfonia de Beethoven ao meus ouvidos e sentidos. 

Por sua vez, é válido ressaltar o quanto é interessante acompanhar a história mais pela visão do Ishida, do que pela garota vítima do bullying. Porque é justamente isso; não é para você ficar só com pena dela, mas dele também, por ter sido um idiota e por querer se redimir de suas atitudes. Não tiro o fato de que sempre é legal ver a justiça sendo feita, o cara pagar pelas consequências e tal. Mas o foco não é esse. Não é só o bullying que está sendo discutido, como também, a reinclusão do malfeitor. Vemos muita verdade no personagem na hora em que se percebe que ele não está querendo a amizade com a garota por causa da rejeição que sofreu, mas por ele mesmo. Essa trajetória dele tentar consertar seu passado e fazer às pazes com a vida novamente não deveria ser tratada como um gesto de vergonha, mas de coragem. Afinal, nem todos consegue essa proeza.

Gosto demais da evolução do personagem, sem dúvida, é uma das características mais louváveis da obra.



Koe no Katachi não se trata de um romance amoroso. Por mais que haja insinuações e brechas para tal, não espere nada desse tipo. É sim um romance em prosa, com camadas e nuances para refletir. A qualidade técnica da animação não é lá estupenda, mas não faz feio. O carácter designer dos personagens eu acho mais bonito no mangá, no entanto, não é ruim. A trilha sonora por sua vez, não é marcante e tão chamativa como de ''Kimi No Na Wa'', exceto pelo começo que toca The Who - de resto nada memorável. A paleta de cores escolhida são tons claros, exceto pela cena *spoiler* que ela tenta se matar e o Ishida chega para ajudá-la, junto depois com a conversa deles na ponte onde se entendem de vez, essas cenas são mais escuras, e é o único momento sombrio descarado do filme *fim dos spoilers*, tirando isso, tudo é maquiado como se fosse uma história feliz, de casalzinho. Porém, repito: não se engane.

Cada pequena reviravolta nesse filme, nos faz pensar em como a vida é imprevisível. Gosto de como através dessa máscara bonitinha se esconde, uma grande obscuridade. É um filme leve, porém pesado pela temática. Nos faz identificar com os sentimentos expostos, exerce em nós uma alta carga de compaixão, nos aflige com os desencontros de ideias, e nos assusta com um possível fim trágico para um dos lados. Enfim, Koe no Katachi é muito mais do que uma história sobre Bullying, é também um pequeno estudo sobre redenção. Uma obra como essa, não poderia ser mais obrigatória.

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