What a Wonderful World! :  a felicidade é possível nesse mundo?


Quem é vivo, às vezes, aparece; e, quando surge, é com um um presente mais ou menos estranho.

O penúltimo programa — forma como a tradução da JBC se refere aos capítulos do mangá — , ‘’Época das Cerejeiras’’, apresenta as consequências de uma pandemia que vinha sendo mencionada em jornais e na TV ao longo de todo o quadrinho. Esta doença, na prática, faz com que os ‘’hospedeiros’’ se tornem uma espécie de zumbi: não falam, apenas se mexem minimamente e parecem presos na própria mente, distantes, como se estivessem revivendo memórias de um passado distante. Não à toa esta ideia de inércia é exposta diretamente no programa 18, “Vento Primaveril’’, em que uma das diversas personagens de WWW! pede a uma Shinigami — entidade que representa a Morte na cultura japonesa — a possibilidade de viver um momento de felicidade para sempre. Com a solicitação atendida, a jovem fica estática em uma escadaria qualquer de um bairro.

A situação ressoa uma das temáticas centrais do mangá, a busca pela felicidade. Diante de um mundo incerto, cínico e cruel, como é possível, primeiro, alcançar a felicidade e, após isso, mantê-la? Caso uma ou nenhuma das duas seja possível, como e por que temos que permanecer aqui? Com isso, além da forma corpórea da Morte se fazer presente a partir de dois Shinigamis, há uma tendência suicida à espreita na história de dezenas de personagens: uma garota que sofre bullying na escola; um antigo punk desiludido com o desenrolar da própria vida; e outros. Todos conduzidos por uma tensão entre a pulsão de vida e morte enquanto tentam ser um cidadão comum da sociedade.

Há história em What Wonderful World!?

What Wonderful World! (no original Subarashii Sekai) — serializado de 2002 a 2004 — , escrito e desenhado por Inio Asano. Assim como outras obras do autor, concentra-se no dia a dia dos personagens no sentido mais mundano possível. Esse viés humano nos mangás de Asano se desdobra no aprofundamento da psique dos personagens, das suas questões existenciais e emocionais, como também em problemas corriqueiros no emprego, na família e na escola/faculdade. Em trabalhos mais famosos como Boa Noite Punpun e Solanin, o enredo de cada um abarca, respectivamente, a jornada turbulenta de Punpun Onodera da infância à vida adulta e o amadurecimento do casal Meiko Inoue e Naruo Taneda diante das expectativas e frustrações de sonhos nunca realizados.

E aqui está a divergência: não há uma enredo uniforme e linear em WWW!. Ao decorrer dos 20 programas do quadrinho, diversos personagens surgem com histórias, dinâmicas e conflitos totalmente diferentes. Cria-se, desse modo, um mosaico intricado e complexo de indivíduos que podem ou não estar relacionados entre si; suas histórias podem ou não continuar em capítulos posteriores; alguns podem ter nomes — Horita, Yokoyama, Toga — , outros, sequer são nomeados. Em um capítulo, acompanhamos um assalto de um homem vestido de Urso a membros de uma gangue; em outro, um bully é escolhido pela professora para levar o dever de casa para a vítima. Outro exemplo, é o oitavo capítulo, em que vê-se a rotina deteriorando a vida de um casal, porém é justamente na previsibilidade da relação que eles encontram alívio do mundo exterior. A namorada, cabe dizer, é quem faz o pedido para a Shinigami.

What, então, é uma antologia composta por episódios específicos da vida de dezenas de sujeitos de um mesmo bairro; embora alguns deles estejam isolados em suas narrativas, a maioria está razoavelmente conectada, de modo que é possível apreender uma certa continuidade das mudanças de dezenas de personagens. Horita, outro exemplo para além da namorada, aparece em um flashback no primeiro capítulo como um punk e, ao longo da narrativa fragmentada do mangá, ele ressurge como um salaryman — termo que designa um trabalhador assalariado de uma corporação.

Com este mecanismo, Inio Asano traduz a própria experiência da vida sob o capitalismo pós-moderno: desorganizada, errante e angustiante. O mangá não expõe integralmente a vida de um único personagem; com nós, leitores, tendo acesso irrestrito aos pensamentos, desenvolvimento, angústia e pano de fundo de suas personalidades. Muito menos há um movimento de apresentar de forma coesa e clara os indivíduos que orbitam um determinado personagem. Há lacunas e fragmentos; momentos desconexos e esparsos na construção da história; acompanhamos, ao longe, pequenas mudanças e interações entre sujeitos de forma sútil.

Irmãos, colegas de trabalho, namorados, amigos, ex-amantes, vizinhos etc., etc. Com toda sorte de dinâmicas e situações, o mangá constrói um panorama de relacionamentos de forma razoavelmente desorientado; em que não há uma linha condutora única. Isto é, com este elenco difuso, sustenta-se a ideia de que não há protagonistas.

Uma vida de coadjuvante

O último capítulo da versão da JBC se enquadrada como um epilogo; ele se passa após uma suposta superação da praga e conta a história de uma jovem que lê uma carta que escreveu para si mesma anos atrás. Enquanto a narração expõe o conteúdo do texto, as imagens a acompanham caminhando pelo bairro e se encontrando com o namorado. Nenhum dos dois têm nome; o rosto do cônjuge nem mesmo é revelado.

Essa ausência de faces em WWW! é um procedimento frequente; seja em ambientes públicos com aglomerações, como o metrô, seja em uma cena de diálogo num espaço privado. Esta escolha estética confere à narrativa uma sensação de desnorteamento e inviabilização oriundas de uma vivência em uma sociedade japonesa pós-moderna, além de apontar para uma total falta de excepcionalismo/protagonismo. Ao transitar por um grande centro, um personagem se vê perdido e pressionado diante de uma multidão sem face, contudo, na mesma medida, ele mesmo a compõe. Um mesmo sujeito pode ser mero extra em uma determinada cena e ser o centro na seguinte. Nesse sentido, o desfoque nos rostos dos personagens opera sob a lógica de que não há protagonistas no Mundo; mundo este anônimo em que todos são ninguém.

Essa prerrogativa ganha contornos mais evidentes no programa que dá título à obra, What a Wonderful World. Um jovem, que trabalha meio período em uma loja de conveniência, vê-se completamente solitário e imerso num vazio existencial. Sem laços aparentes e num emprego precarizado, o trabalhador se sente como um coadjuvante na própria história: nada acontece como ele quer; o trabalho é desmotivador e excruciante; ele percorre uma cidade na qual uma pessoa em situação de rua é espancada sem razão; e a sua ex-namorada, agora, o enxerga como um desconhecido.

Toda a construção deste capítulo é pautado numa desagregação do sujeito, na medida em que, diante de uma sociedade tensionada pela lógica da precarização, o próprio ser perde o significado. Quase como um passante, o personagem sem nome vagueia pelas ruas, passa por pessoas e, novamente, nada faz sentido. What expõe, aqui, o dia a dia orientado pelo humano, pelo pequeno, pela desimportância, em que não há controle na vida ou grandes eventos. Ao final, o grande momento do dia do personagem é que um cachorro não foi comido vivo.

Contudo, algumas questões ficam no ar: sob este sistema, quais são as possibilidades de viver mediante a precarização do trabalho?; como é possível alcançar uma felicidade com salários baixos?; como é possível haver um senso de protagonismo quando possibilidade de realização de um sonho está cada vez mais distante?

Ser jovem na sociedade contemporânea japonesa

A música What a Wonderful World, interpretada por Louis Armstrong e composta por Bob Thiele e George David Weiss, foi lançada em 1967 — um período marcado não apenas pelo conflito entre União Soviética e Estados Unidos pela hegemonia global, mas, também, pela luta do povo preto por direitos civis em solo estadunidense. Esse contexto já evidencia uma grande disparidade entre o mundo exposto na música e a realidade material vivida por grupos vulneráveis, sobretudo, pelos negros. Munido de ironia, a canção utiliza-se dessa incongruência a fim de destacar as mazelas, e, para além disso, não deixa de esquecer o lado bonito e belo da nossa realidade.

Inio Asano, armado com essa mesma leitura, elaborou a sua versão ao articular as inquietações e aflições a partir de uma realidade histórica específica, a japonesa. Nesse sentido, no lugar das tensões raciais e da Guerra Fria dos anos 60, o autor molda o quadrinho através da sensação de desesperança e precariedade da Década Perdida — período que corresponde aos anos 90 e começo dos anos 2000, no qual ocorreu um estouro da bolha financeira japonesa, e, por consequência, uma estagnação econômica.

Antes da Perdição, o Japão estava envolto em um otimismo em relação ao futuro, já que o país no pós-guerra se encontrava em pleno crescimento econômico; tornando-se, inclusive, uma potência global, entre outras razões, devido ao alto investimento em tecnologia de ponta. Com este desenvolvimento acentuado, incorreu na sociedade uma percepção de que um emprego estável e seguro era a norma. O salaryman, hoje visto de forma razoavelmente pejorativa, era entendido como um exemplo a ser alcançado e valorizado. Empregos seguros, qualidade de vida e um salário estável, embora não fossem a realidade da maioria da população, era uma perspectiva plausível e tangível.

Em decorrência da estagnação da economia, não apenas a noção de fácil acesso a um emprego estável deteriorou-se, como a própria realidade material da população japonesa, principalmente da juventude. O aumento do custo de vida; a crescente taxa de informalidade; o acréscimo de homens, principalmente mulheres, em empregos de meio período; a proliferação da instabilidade e incerteza do trabalho estável no Japão transforma o que antes era uma geração esperançosa, em perdida. Nesse sentido, a precariedade e a falta de expectativa de uma vida estável e feliz atravessam os sonhos e as perspectivas de dezenas de milhares de pessoas.

Em What a Wonderful World!, Inio Asano pretende retratar uma geração perdida em meio às pressões da sociedade e à precarização do trabalho na contemporaneidade. Para isso, ele lança mão de uma coletânea de episódios da vida de dezenas de personagens que são, de alguma forma, atravessados pela impossibilidade de lograr uma noção de sucesso pré-estabelecido, por um lado; e por outro, os próprios sonhos, construídos para além do socialmente aceito, são esvaziados e detidos.

Esta situação de precariedade e perdição já é demonstrada no primeiro capítulo do mangá. Yuriko Togawa, uma ex-universitária de 23 anos, vive em uma apartamento barato e minúsculo próximo a uma linha de metrô barulhenta; em um subemprego e com a universidade recém abandonada após 6 meses. Os seus poucos dias de folga servem apenas para deitar na cama e sonhar com a sua tartaruga de estimação. Em um dado momento, ela passeia pela cidade e encontra Horita, antigo amigo e ex-colega de banda e faculdade, e o descobre menos punk e mais adequado ao que é esperado pela sociedade. Ao voltar para casa, em um momento a lá Clube da Luta, Toga presencia o seu apartamento em chamas. Tal como a tartaruga de seus sonhos, Toga sai da casca e, agora, busca reorganizar sua vida, à procura de tentar realizar o seu sonho de ter uma banda.

Em ‘’Sunday People’’, um mangaká recusa um convite para ir a uma reunião de turma por se considerar um fracassado tanto no pessoal, quanto na carreira. Afinal de contas, ele é um homem divorciado cujo mangá não é um sucesso estrondoso. Essa recusa à ‘’festa’’, no entanto, é repensada quando ele passa um dia com a filha e a ex-esposa.

Xarope, que dá título ao programa 9, um ex-bailarino aparentemente ‘’enlouquecido’’ deseja se tornar um pássaro e, ao tentar pular de um prédio, é salvo por dois jovens pré-vestibulandos, Endo e Tamotsu. Os dois garotos veem-se ansiosos e sem esperanças diante do futuro. Endo quer ser um skatista profissional; Tamotsu sonha em trabalhar com fotografia. A dupla não aparenta ter um mínimo ímpeto de passar na universidade, o que se reflete no descompromisso em estudar para o vestibular. Em determinado momento, Xarope dialoga com Tamotsu sobre não haver escolhas erradas e certas na vida, o que nos resta a fazer é seguir em frente. Após isso, abruptamente, ele é acertado por um ônibus e finalmente voa.

Estes três capítulos supracitados apontam para um estado de desesperança, ansiedade e uma sensação de fracasso e deslocamento produzidos e reforçados pela sociedade. A partir de determinados paradigmas — como sucesso profissional, acadêmico e pessoal — , é instaurada uma pressão sobre os jovens acerca de como devem gestar suas escolhas. Há um modo de viver mais correto que o outro; perspectivas aceitáveis; e sonhos pré-prontos com uma maior probabilidade de sucesso.

Rapidamente, vamos nos atentar ao vestibular.

Embora seja tão somente pano de fundo da história, o exame para a entrada numa faculdade é parte de um paradigma norteador para adquirir prosperidade, e que é abraçado por diversos personagens. Ele por si só é uma estrutura, muitas vezes, pensada menos como um modo de verificar as competências e aptidões do estudante de modo diverso, amplo e plural, e mais como uma análise de desempenho de habilidades muito específicas, atestando quem consegue fazer uma prova, ao decorar com precisão não apenas os conteúdos esperados, como também a forma como eles serão abordados. Esse filtro para a universidade evidencia um projeto cuja orientação é interditar a entrada de indesejados — isto é, algumas pessoas podem ter acesso ao conhecimento e fazer acadêmicos, enquanto outras não. Paradoxalmente, cria-se um disparte, pois cria-se uma noção de que todos devem obter a mesma forma sucesso, mas, o próprio design do sistema veta o acesso para certos grupos e sujeitos.

Como dito, um emprego estável era visto como uma garantia a todos os cidadãos japoneses, mas, igualmente, um objetivo: o indivíduo deve ser um salarymen, um provedor do lar e também envolver-se num matrimonio, com filhos. Essas prerrogativas pré-concebidas, incentivadas pela sociedade e reproduzidas na mídia, situam a juventude em um lugar sensível diante da conjuntura do país. À titulo de exemplificação, uma criança cresce nos anos 80 cujo contexto político-histórico é animador e esperançoso, no qual a promessa de estabilidade e bem-estar; no entanto, nos anos 90, já jovem, o sujeito experimenta um mundo fantasma — as possibilidades de outrora, caso ainda existam, são apenas para um grupo seleto de pessoas. Agora, está submetido a vender sua força de trabalho por pouco a fim de sobreviver. Sonhos não cabem mais na realidade.

Desenho de perfil de um jovem japonês; ele tem um grande moicano e usa óculos de grau e um brinco na orelha.

Então, a felicidade é possível?

No programa 2, uma criança sofre bullying da turma enquanto é assombrada por um Shinigami em forma de corvo. Para provar seu valor diante da classe, ela decide entrar em uma brincadeira perigosa: descer uma grande ladeira sem frear. A garota conseguiu; respeito conquistado. Durante o capítulo, é pertinente dizer, o Deus da Morte questionava a garota por que ela ainda estava viva, atormentando-a para que ela escolha a morte de uma vez por todas.

Se a vida é arredia e dificultosa, por quais razões seguimos em frente? A cada desenlace vivido pelos personagens paira, simbólica e literalmente, a presença da Morte e da desistência. Afinal, os problemas e os infortúnios se acumulam: a dificuldade de arranjar emprego; términos de relacionamento; bullying; precariedade do trabalho; as preocupações da vida adulta; etc. Assim sendo, em cada programa, há uma busca contínua pelo sentido de seguir adiante. Essa luta intensa e sensível entre as pulsões de viver e morrer é uma espécie de fio condutor que pauta as decisões dos personagens. Com isso, uma pergunta se coloca: vale a pena viver?

Torna-se pertinente retomar os capítulos ‘’Época das Cerejeiras’’ e ‘’Vento Primaveril’’, nos quais o adoecimento da população em decorrência de uma misteriosa enfermidade, é mencionado de modo frontal. Cabe esclarecer, todavia, que não é explícito que a pandemia foi ocasionada pelo pedido feito a Shinigami pela personagem, necessariamente. É uma sugestão; um acontecimento aberto para possíveis leituras.

Em uma primeira instância, este pedido da personagem tem uma motivação clara: a felicidade precisa ser mantida, haja vista a sua característica frágil e até mesmo, rara. E levando em consideração não apenas a jornada dela em específico, como de todos os outros, a busca pela alegria é uma tarefa árdua, à medida que a sociedade e o mundo se constituem quase como uma barreira em si. Desse modo, o pedido dela parece ressoar razoavelmente uma vontade coletiva.

Interessantemente, a ‘’pandemia da inércia’’ articula dimensões distintas. Primeiro, uma leitura de que uma satisfação eterna e imutável só é possível com a inércia. Nesse sentido, isto evoca a ideia de que os momentos bons só fazem sentido conforme os dolorosos e angustiantes os antecedem (ou procedem). Dito doutra forma, a vida é uma mescla de ladeiras e subidas, que se influenciam mutualmente. Com isso, uma rotina com quem amamos afaga as dores; observar a filha caindo, porém se levantando, faz com que algumas situações de desalento façam sentido; que consigamos seguir em frente. Daí a letargia e a estagnação são o resultado do pedido. A personagem, para viver um momento para sempre, abdicou da vida em si, justamente pela necessidade de existir a tristeza, a angústia e o desalento.

Isso não elimina as profundas e recorrentes crises estruturais as quais lidamos todos os dias, porém. Embora haja uma satisfaça momentânea neste pensamento, nem toda dificuldade, muito menos qualquer precariedade, é aceitável. Isto é, a falta de emprego, os salários baixos, as poucas garantias de um subemprego são dados reais, de vivências concretas; uma conjectura formada por decisões, articulações, interesses e impactos tangíveis. Logo, apesar dessa ideia aliviar a angústia, a questão vai para além de um contentamento individual.

Por isso, esta doença ganha um outro caráter, um‘’modus operandi’’, no sentido de que, aparentemente, a única forma de lidar com o mundo é, realmente, não sentir nada. Uma apatia generalizada diante de estruturas maiores que nós mesmos. Pois, afinal, o que fazer?

Referências Bibliográficas:

  • Precarious Youth in Contemporary Graphic Narratives: Young Lives in Crises — Editado por María Porras Sánchez and Gerardo Vilches
  • Japan: The Precarious Future — Editado por Frank Baldwin e Anne Allison

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